O sistema penitenciário do Maranhão foi eleito no primeiro semestre de 2023 como o melhor a nível nacional, porém a realidade vivida pelos detentos e detentas são outras.
Almoço muitas vezes estragado, café da manhã servido numa garrafa pet, água para beber suja, remédio paracetamol para qualquer tipo de dor, celas não privativas para mulheres e sem possibilidade de receber visitas de filhos e outros familiares. É assim a realidade vivida por centenas de pessoas que estão em regime penitenciário no presídio da capital São Luís.
Essas violações de direitos foram expostas durante a Audiência Pública sobre a Transferência das mulheres que estavam na penitenciária de Davinópolis para São Luís, convocada pela 2° Vara da Fazenda Pública, ocorrida no último dia 19 de outubro na Câmara de Vereadores de Imperatriz.
A Audiência serviu para as autoridades presentes (juízes, defensores, advogados e promotores) ouvirem familiares, amigos e testemunhas sobre o sistema carcerário do estado, sobretudo, como as pessoas são tratadas dentro dos presídios que recentemente foram considerados os melhores do país segundo o levantamento de Informações Penitenciárias da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), referente ao primeiro semestre de 2023.
Por meio da Audiência, o corpo jurídico pôde registrar as demandas e apontar possíveis caminhos para resolver os problemas das penitenciárias do estado.
Sobre o caso
A situação dos presídios do Maranhão veio à tona após 43 presidiárias, que cumpriam pena no presídio de Davinópolis, localizado no sudoeste do estado, serem transferidas, sem aviso prévio, a elas e seus familiares, para o presídio de São Luís, cerca de 632 km de distância de uma cidade a outra.
O motivo da transferência, segundo o estado, é que a unidade da capital maranhense é uma das melhores do país, e possui taxa de ocupação que possibilita melhores condições para as atividades de trabalho e educação das presas, enquanto que no presídio de Davinópolis isso não seria possível, pois homens e mulheres dividem o mesmo espaço.
Mas, segundo a Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE-MA), a condição vivida pelas detentas era desumana e a Defensoria já havia estabelecido diálogos com o Estado sobre a situação das detentas em Davinópolis e era objeto de atuação da Defensoria como forma de minimizar as violações de danos às mulheres encarceradas.
“A gente nunca foi consultado previamente sobre isso [mudança das mulheres presas para o presídio da capital], então a gente não teve oportunidade de apresentar alternativas a essa prática do Poder Executivo Estadual. A gente vinha lutando aqui já há algum tempo pela antecipação das liberdades delas. Então, por exemplo, durante todo o ano de 2021 e 2022, a gente vinha tentando garantir que todas elas estivessem eventualmente libertadas, em razão da ausência de estabelecimento adequado”, afirma o Defensor André Luís Jacomin.
Segundo ele, a Defensoria havia pensado em um trabalho alternativo que vinham realizando e cobrando aos órgãos de fiscalização do Poder Judiciário e de outras entidades do poder público “para que tomassem alguma providência em relação a isso e reforçando sempre as medidas de antecipação de liberdade”, pontua o defensor André Luís Jacomin.
Juízes, promotores, advogados e procuradores marcaram presença na Audiência Pública. (Fotos: Daniela Souza)
Alguns dos relatos durante a Audiência
Os relatos das pessoas prejudicadas com a mudança das detentas para o presídio da capital apontaram dificuldades em visitar semanalmente as mulheres encarceradas, pois as famílias não tinham condições financeiras para irem à São Luís toda semana, somente uma vez por mês.
Uma das familiares é a dona Célia Maria Cirqueira, de 65 anos, aposentada, residente do município de Porto Franco (cerca de 2h de distância até o presídio de Davinópolis). Dona Célia é tia de uma das mulheres que cumpria pena na penitenciária de Davinópolis.
Segundo ela, os gastos para visitar sua sobrinha em São Luís são cerca de 700 reais. “Eu recebo um salário mínimo e só posso ir até São Luís uma vez por mês. A mãe dela não pode ir porque está muito doente. Eu peço para trazer elas de volta pra cá”, disse dona Célia à equipe jurídica presente na Audiência.
Durante a Audiência foi ouvido também uma jovem que foi presa em Imperatriz no início do mês de agosto e consequentemente foi transferida para a capital São Luís. Não vamos registrar o nome dela nesta reportagem. A jovem relatou que ficou dois dias e duas noites em presídios masculinos, em celas improvisadas sem cama, sem chuveiro e sem privacidade.
De acordo com ela, houve maus tratos durante o translado para o presídio da capital que foi feito num camburão, sujo, sem banco, sem cinto de segurança, sem ventilação e iluminação, algemada todo o trajeto de 632 km (mais de 10h de viagem), o que impossibilitou de se segurar para se proteger das pancadas no assoalho e laterais do carro, causadas pelas ultrapassagens e má conservação da estrada, algo que lhe causou muitas dores no corpo.
“As outras presas me disseram que ficaram com hematomas. Não levei minhas roupas e nem objetos pessoais. Me entregaram o kit de higiene pessoal dois dias depois que eu estava lá”. Pelo fato da comida muitas vezes ser servida estragada, ela e as demais mulheres presas, quando sentiam muita fome, pegavam apenas a carne da marmita e comiam com farinha.
A jovem destacou o abalo emocional que sofreu por estar tão longe de familiares e, principalmente, de sua filha de apenas 4 anos. Ressaltou que o único remédio oferecido pelos médicos que atendem no presídio é paracetamol. “Dor de cabeça, febre, dor de dente…não importa o que seja é paracetamol a medicação. Parece que o único remédio do presídio é paracetamol”.
A doutora em Sociologia, Vanda Pantoja, professora na Universidade Federal do Maranhão (UFMA-campus de Imperatriz), analisou o sistema carcerário. “Eu tenho feito algumas pesquisas que envolvem as mulheres encarceradas no estado do Maranhão. Quando nós falamos de pessoas encarceradas nós já passamos por um processo de transformação mental e, existe no nosso imaginário, que essa pessoa, que passou ou passa pela prisão, é como se ela perdesse o status de humano.”
Ela explicou que algo socialmente imposto no senso comum já estabeleceu que uma pessoa encarcerada pode ter direitos violados. “É como se a pessoa encarcerada ela perdesse o status de humano. O seu corpo pode ser violado, pode comer comida estragada, ela não tem direito à assistência médica, que já é precária para quem está fora da prisão, e pra quem está preso é ainda pior porque é como se isso fizesse parte do castigo”.
Vanda destacou que tudo isso e outros maus tratos são tolerados pela sociedade que está fora da prisão. Outro ponto destacado por ela foi em relação ao vínculo, pois segundo a Legislação, as pessoas encarceradas elas não podem ficar longe da família.
“Está na Lei! No regramento que o próprio Estado criou e é o próprio Estado que fere a regra. As 43 mulheres que foram transferidas para a penitenciária da capital sem acordos e sem avisar, elas não são presas-encarceradas-presidiárias- nomes que damos para falar de pessoas, elas são filhas, são esposas, são mulheres, são trabalhadoras, são mães. O processo de encarcerar já degradante para uma pessoa […] e quando é vivido longe da família ele [prisão] é extremamente degradante”.
Por meio da Audiência, o corpo jurídico pôde registrar as demandas e apontar possíveis caminhos.
Sobre o presídio de Davinópolis
A coordenadora do Centro de Direitos Humanos Padre Josimo de Imperatriz, Conceição Amorim, relembrou durante a Audiência Pública como foi constituído o presídio feminino de Davinópolis. “O presídio é fruto das mulheres que estavam encarceradas na CCPJ [Central de Custódia de Presos de Justiça – localizado em Imperatriz], em 2010. O presídio de Davinópolis foi criado para ser um presídio feminino. Ele nunca foi criado para ser um presídio masculino.”
Ela pontua ainda que o processo para a construção do presídio se deu por meio de uma mobilização. “Ele foi criado depois de uma grande mobilização e fizemos uma carta escrita e publicada no jornal Folha de São Paulo. Ele foi criado depois de um trabalho que fizemos junto com as mulheres que estavam na CCPJ e elas fizeram essa carta escrita e assinada a mão junto com a Juíza da Execução Penal do Estado”, afirma Conceição que acompanhou todo o processo de criação do presídio.
Segundo ela, da noite para o dia o Estado passou a levar os homens para o presídio de Davinópolis deixando apenas 3 salas para as mulheres. “O estado alegou que o presídio de Davinópolis era misto e tinha vagas para receber os homens. Disseram ainda que a CCPJ estava superlotada. Mas o presídio de Davinópolis não foi criado para receber ser misto, e sim, feminino”, ressaltou Conceição durante a Audiência Pública.
A capacidade do presídio de Davinópolis antes da reforma era de 40 pessoas, mas foi ampliada para 120 internos. Estima-se que o número de vagas na Central de Custódia Preso de Justiça (CCPJ – Imperatriz) é de 270 internos após as obras serem finalizadas.
Revisão das jornalistas Dhara Inácio, Idayane Ferreira e Mari Leal.
Jornalista especializada em Assessoria de Comunicação Organizacional e Institucional. Já vivenciou experiências profissionais nas áreas de publicidade e propaganda, produção de documentários, radiojornalismo, assessoria política, repórter do site jornal Correio de Imperatriz e social mídia. Boa parte de suas experiências profissionais foram em assessorias de comunicação institucional de ONGs, com ativismo social voltado para a defesa de direitos humanos, justiça socioambiental e expansão da agroecologia na região do bico do Papagaio; esses trabalhos ocorreram nas cidades de Açailândia, Imperatriz (MA) e Augustinópolis (TO).