Carolina Maria de Jesus: escritora, compositora, cantora e poetisa

“Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”

“- E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

(Trechos de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus)

Carolina Maria de Jesus. Ilustração: Idayane Ferreira.

Carolina Maria de Jesus foi uma renomada escritora brasileira e uma das primeiras autoras negras destacadas do país. Foi pioneira em abordar o ponto de vista dos marginalizados e os desafios da urbanização em um país em rápida industrialização. Sua trajetória literária abriu caminho para outras escritoras negras no Brasil.

Nascida em 14 de março de 1914, em Sacramento, Minas Gerais, filha de pais analfabetos, teve uma infância marcada pela busca por educação. Com estudo limitado, frequentou o colégio Allan Kardec por dois anos, sustentada por Maria Leite Monteiro de Barros, cliente de sua mãe que trabalhava como lavadeira. Carolina revelou talento precoce para a escrita e amor pela leitura.  

Em 1937, após a morte de sua mãe, mudou-se para São Paulo. Entre mudanças de cidades e trabalhos como lavradora e empregada doméstica, se estabeleceu, aos 33 anos, grávida e desempregada, na favela paulista do Canindé. Sua vida de catadora de papel se entrelaçava com a escrita fervorosa de diários em cadernos recolhidos no material que coletava.

O reconhecimento literário veio quando, em 1958, o repórter Audálio Dantas, ao percorrer a favela do Canindé, descobre seus cadernos repletos de anotações cotidianas. Esses escritos tornaram-se a base do livro que a projetou internacionalmente, transformando Carolina em uma figura literária notável da noite para o dia: Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Lançado em 1960, a obra foi fenômeno de vendas e traduzido para mais de dez idiomas, solidificando Carolina como uma autora de renome. Sua escrita, autêntica e simples, trouxe à tona as dificuldades de uma mulher negra, favelada, pobre e solteira nos anos 50. Com sua narrativa singular, denunciou as condições de vida na favela, na luta pela visibilidade e dignidade das comunidades marginalizadas.

Sua vida após o sucesso de “Quarto de Despejo” foi marcada por entrevistas, viagens e eventos literários, transformando-se de “negra favelada” em uma figura popular conhecida como “Cinderela negra”. Carolina deixou a favela e comprou uma casa no bairro de Alto de Santana, explorando o universo da classe média.

Experimentou uma ascensão breve e, eventualmente, enfrentou o esquecimento. Mudou-se de Santana para Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, buscando uma atmosfera que mesclasse contrastes sociais e lembranças de sua infância. Lá voltou à realidade de catadora de papel.

Apesar de sua vida difícil, se destacou na cena política e cultural, defendendo causas como educação de qualidade, moradia, emprego e reforma agrária. Contudo, seu apoio a Jango antes do golpe militar de 1964 teve consequências negativas, levando ao seu confinamento e contribuindo para o ostracismo.

Tom Farias, crítico e biógrafo, destacou em “Carolina – Uma Biografia” (2017) a força criativa e determinação única da escritora, simbolizando a luta contra a fome e a miséria por meio da palavra. Ele ressaltou ainda a extraordinária jornada de uma autora improvável que, com coragem e talento, transcendeu as barreiras sociais e culturais de sua época.

A produção literária de Carolina, embora não extensa, abrange não apenas o aclamado “Quarto de Despejo” mas também obras como “Casa de Alvenaria”, “Pedaços de Fome” e “Provérbios”. Após sua morte, obras póstumas, incluindo “Diário de Bitita” (1977) e “Antologia Pessoal” (1996), ofereceram uma visão mais ampla de sua genialidade, além de revelar mais camadas de sua vida, desde a infância até a maturidade.

Além de escritora, Carolina expressou sua poesia e músicas em um álbum musical, “Quarto de Despejo (1961),” evidenciando sua versatilidade artística por meio de composições que ecoam suas experiências. Seus poemas, como “Sem Título”, “Muitas Fugiam ao Me Ver” e “Quarto de Despejo”, revelam sua busca por reconhecimento, enfrentamento do racismo e uma reflexão sobre sua própria trajetória. O reconhecimento acadêmico e a atenção crescente desde os anos 1990 destacam a importância da obra da autora para a compreensão do Brasil, do racismo e da luta das mulheres.

Mãe solo de três filhos de diferentes relacionamentos, João José, José Carlos e Vera Eunice – Carolina perpetuou a resiliência ao cria-los em meio às adversidades, tornando-se exemplo de força e determinação. Desafiou ainda as convenções sociais ao recusar o casamento.

Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977, em São Paulo, aos 62 anos, por insuficiência respiratória. Deixou outros escritos inéditos, incluindo romances como “Felizarda” e “Os escravos”, além de contos, peças de teatro e letras de música. Seu legado literário transcende sua vida difícil, sendo reconhecida por sua expressão única e corajosa.Em 2021 recebeu homenagens significativas, como o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma mostra no Instituto Moreira Salles.

A literatura de Carolina vai além do testemunho, envolvendo interconexões que abrangem influências de diversos meios. Sua expressão criativa é permeada por uma intensa necessidade de comunicar e reconfigurar o mundo.

Embora tenha enfrentado o abandono e a incompreensão em vida, Carolina Maria de Jesus emerge agora como uma inspiração para trajetórias artísticas e de vida que desafiam o poder e os privilégios. Uma mulher negra, mãe, favelada, com pouca escolaridade e catadora de papel, se tornou uma referência poderosa para aqueles que desafiam as barreiras estruturais da nossa sociedade.

Idayane Ferreira
Idayane Ferreira

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