Um basta na ‘obrigação’ de gostar 

Depois de conversar com uma amiga, me peguei refletindo sobre a dinâmica do gostar nas nossas relações compulsórias, principalmente nas relações laborais. Às vezes tenho a impressão de que não basta ser um colega de trabalho respeitoso e cordial, tem que gostar e ser gostado do/pelo coleguinha. Não basta ser um profissional comprometido, que cumpre suas tarefas com maestria e até entusiasmo, tem que construir uma relação descolada, ser gostado, gostar (ou fingir que gosta) da chefia. Já parto aqui de uma confissão, não sei alimentar essa dinâmica. Sou do grupo dos transparentes faciais. Fica tudo ali estampado – para o bem e para o mal. 

Em uma dada ocasião, fui tomada por semanas e semanas de desconforto em um local em que trabalhava. Eu até identificava que aquela sensação de desencaixe não tinha a ver com os outros. Ruminava aquilo internamente, questionava os meus próprios botões. Até que um dia, retornando para casa, sentadinha e quieta no banco de trás do carro de aplicativo, com metade do rosto escondido sob a obrigatória máscara facial (tempos pandêmicos), aquela agonia encontrou as palavras de expressão: “Eu simplesmente não gosto dele (um dos meus chefes à época). Não gosto. Não quero gostar. Não quero relação alguma além dos limites da empresa”. Pense na sensação de liberdade!

 “Quero um trabalho que me avalie pela minha qualidade profissional, que eu não viva com medo da demissão porque não gosto do joguinho de simulações”, disse minha amiga. Ela sabe que, se a bola dividir, o sarrafo da decisão vai bater lá no nível dos gostados e dos que gostam.  

“Hoje ele me deu uma tarefa de última hora, quando eu já estava com algo extra, e eu já tinha passado do meu horário. Ele não gosta de mim”, desabafou outro amigo dia desses.

Outra amiga, que está se preparando para seguir um projeto pessoal, confessou estar Preocupadíssima em como vai dar a notícia do pedido de demissão à sua chefia. “Ela gosta tanto de mim”, lamentou. 

E se não gostasse? Tem que gostar para tratar bem? Tem que gostar para compreender e validar as decisões do outro? Que régua é essa do gostar? O que é esse gostar?

Não tenho resposta, e nem a pretensão de tê-la. Mas parece algo tão superficial. Uma casquinha fina e frágil em que se simula afetos. Isso porque a mesa pode virar por qualquer bobo motivo. Se pedir demissão, se disser que não pode ficar um pouco mais, se, em uma eventualidade, discordar. É tipo aquelas amizades infantis. Não cabe a contrariedade, não cabe a frustração. Aquele mísero filete de sentimento é intocável.  Intocável e valoroso. Imenso a ponto de ser fator de decisão, de ser balança de precisão. 

Veja bem, não estou descartando a necessidade de ter boas parcerias. Só mesmo colocar em xeque esse gostar frio que acaba calibrando boa fatia das relações de trabalho. Ser educado e respeitoso não passa pelo gostar. Ser generoso e empático não passa pelo gostar. Ser um profissional qualificado não passa pelo gostar. Chega da “obrigação” de gostar! Hoje só estou como mensageira do caos.  

Não goste de ninguém que você não tenha escolhido se afetar.

Mari Leal
Mari Leal

Mulher preta, baiana do interior, mas acolhida pela capital (Salvador). Jornalista de formação, fui pescada para a cobertura política muito cedo, e aí estou há uma década. Na vida, um ser que deseja experimentar a multiplicidade do Universo e dos universos (humanos). Um coração pisciano que deseja desbravar o desconhecido. Amo os clichês e a forma como se mostram imperativos na vida cotidiana. Simples e grandiosos, acredito que carregam os segredos de um viver “ser”. Como Belchior, “não quero o que a cabeça pensa, quero o que a alma deseja”. E talvez seja este o meu principal desafio. Neste espaço, te convido para refletirmos sobre o cotidiano e como a vida prática nos atravessa.

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