Sorte no jogo …

Narrado em terceira pessoa, Dupla Falta é um livro sobre casamento, paixão e frustração e traz dois personagens muito bem construídos através da escrita objetiva, precisa e muito mordaz. O livro é enfadonho em algumas partes e tem um ritmo veloz em outras passagens e creio que esta é uma técnica usada pela autora para fazer alusão ao estado psíquico de Willy ao longo do texto.

Willy Novinski não sabe o que é a vida sem o tênis: desde os cinco anos que ela quer ser tenista e não tem outro desejo. “Ame a mim, ame meu jogo”. Ela é o próprio jogo e está identificada com ele. Ela quer estar entre as 200 tenistas profissionais do mundo e treina duro para isso.

Eric Oberdorf é um rapaz de classe média alta que formou em matemática na Princeton com louvor, porém aos 18 anos começa a jogar tênis na faculdade e traça um futuro nas quadras de tênis, pois tenistas se aposentam aos quarenta anos e a partir daí ele pode exercer a sua profissão.

Para Eric, tênis é matemática, probabilidade e treino duro. Para Willy, tênis é paixão e vocação que se aperfeiçoam com treino duro. Eis que os dois se encontram numa quadra de tênis pública em Manhattan. Ela com 23 anos e tenista profissional, a 437ª do feminino mundial; ele com 24 anos e com jogadas muito toscas. Se apaixonam e se casam.

Ambos estão querendo um espaço na Associação de Tenistas Profissionais no circuito internacional e a vida cheia de cumplicidade e de amor abre espaço para a competitividade cada vez mais acirrada para ter um lugar na elite do tênis profissional mundial.

Lendo Dupla Falta, eu me lembrei de uma crônica de Rubem Alves sobre casamento. Para ele, casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

O casamento de Willy e Eric é como um jogo feroz, onde o objetivo é um derrotar o outro, mesmo jogando em campeonatos diferentes. Eric tem a exata noção do ponto fraco de Willy e é justamente para aí que ele dirige a sua cortada interrompendo o jogo de Willy, derrotando-a. Como não há Willy sem tênis, ela fica ressentida, péssima e cada dia mais magoada e com raiva. Eric vai no que ela tem de mais caro: seu temperamento, pois ela literalmente explode de raiva.

À medida que Eric cresce no placar e se aproxima dos 200 mais, o rendimento de Willy decai. É como se os pontos que ela perde passassem para o score dele, mas na verdade, ela fica paralisada diante do crescimento dele; ela não consegue se reerguer quando ele a ultrapassa no ranking e ela fracassa. Quando ela perdia em um torneio, era difícil seguir em frente, ter um pensamento positivo depois de uma derrota, pois ficava uma marca do fracasso e Willy falhava novamente em um jogo. Nesta parte do livro, em que Willy descreve seus erros e tropeços, eu lembrava de Samuel Bekett : “Não importa. Tenta outra vez. Fracassa outra vez. Fracassa melhor”. Willy tentava e fracassava e destruía a estima por si mesma.

Seus sonhos de chegar à elite do tênis fraquejam, a sua subjetividade se estilhaça e, de repente, diante da potência do marido, ela tem que encarar o inevitável: a falta.


Começa a perder nos circuitos de menor destaque, enquanto ele vai entrando no universo dos melhores tenistas mundiais. Logo ele, um azarão que mal sabia pegar em uma raquete. Isso a deixa mergulhada em raiva e comete mais enganos: perde de adversários inferiores briga com o juiz, tem um bloqueio de trinta num jogo decisivo e falha. Fracassa mais. Depois do coice vem a queda: ela tem uma lesão grave e precisa parar de jogar e seu ranking cai vertiginosamente. Willy fracassa mais uma vez. “Fracassa melhor”.

Fracasso. Falta de êxito. Malogro. Erro. Engano. Frustração … A vida de Willy está em franco declínio. Ela começa a duvidar de sua capacidade e como ela está identificada com seu jogo, ela começa a duvidar de si. Supõe que Eric a deixará caso ele suspeite que ela é uma farsa. Diante da ascensão de Eric, Willy fica inibida subjetivamente e se paralisa.

Este livro nos coloca diante de uma imagem do que pode ser um casamento: lugar onde se deposita suas frustrações e ressentimento, pois o egoísmo de Willy é visto nas ações de Eric, então ela vacila e fica irada quando ele é gentil e compreende cada um de seus desacertos. Será que compreende ou Willy perder aponta para o narcisismo de Eric? Como é possível que ele continue a vencer e vencer quando eu estou em queda livre? Como é possível eu falar e fazer tudo o que eu faço e ele não se abater? Ela esquecera que Eric é aquele que joga mascando chiclete, totalmente indiferente ao seu adversário. Ele quer saber de números apenas.

Diante de tanta angústia, Willy se questiona se ela está com ele porque ele desnuda as suas imperfeições e se ela se sente tão sem valor por ele ser tão valoroso (Eric é bom em tudo o que se propõe a fazer). A autora aborda abismo que separa os dois gêneros e nos traz um retrato cruel do masoquismo feminino, da luta de Willy contra sua feminilidade e dos venenos poderosos que uma mulher ressentida pode se servir para destruir o homem.

Boa parte do livro me questionava se Willy procuraria ajuda, então Eric sugere um psicólogo para que ela vislumbrasse o que ocorria com o seu jogo. Ela vai a um psicólogo esportivo e ele questiona se o que a deixa frustrada é estar perdendo ou Eric estar ganhando. Este ponto promove uma divisão em Willy, pois ela se questiona sobre o ódio que dedica ao marido. A análise avança e ela precisa escolher se continua a jogar ou se permanece sendo a esposa de um dos melhores tenistas do mundo. Afinal, um jogo de tênis termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. Será que Willy ganhará neste jogo do amor? Mas a que preço?

Update: eu só consegui entender o título do livro nos parágrafos finais.

Ficha técnica:

Título: Dupla Falta

Autora: Lionel Shriver
Páginas: 438
Editora: Intrínseca

Avaliação: Muito bom

Lília Sampaio
Lília Sampaio

Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.

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