Quando a arte imita a vida

Conceição Evaristo fala que a escrita é uma traição da oralidade e que ao escrever a história que escuta do outro sempre vai haver lacunas. Assim ela começa a nos narrar a história de Fio Jasmim contada pela boca de outras pessoas: um príncipe negro que encanta as mulheres e deixa sua semente por toda a região onde vai a trabalho como maquinista.

“Canção para ninar menino grande” conta estas histórias como uma grande novela com as vozes de mulheres que antes eram suas amantes, exceto uma: Eleonora Distinta de Sá, a única que conheceu seus vazios e sentimentos, pois mesmo dormindo na mesma cama que Fio Jasmim, tinha nela um amor diferente: o amor de amiga.

Fio Jasmim, que entra mudo e sai calado da história, é narrado por suas peripécias e masculinidade analisadas pelas mulheres que passaram por sua cama. Exceto por Eleonora que deu voz aos seus sentimentos. Até conhecer Eleodora, nunca havia prestado muita atenção aos sofrimentos dos outros, nem aos dele próprio, pois “dores não eram sentimentos de homens, e sim das mulheres. Entretanto, parece que elas mesmas sanavam suas dores com lágrimas”. Fio Jasmim seguia os conselhos do seu pai e dos homens mais velhos que conhecia: trabalhava, supria as necessidades da mulher e dos filhos do casamento, pois estes ele tinha a certeza que eram dele, mas nada queria saber dos filhos que nem ele mesmo sabia da existência; as mães davam conta sozinhas, não precisavam dele financeiramente.

Quando sua amiga Eleonora contou a Fio Jasmim que sofria muito com desencontro com a mulher amada, provocou em Fio um incômodo até então desconhecido e se questionou onde estavam todas as mulheres amantes dentro dele, pois muitas eram imagens difusas, pedaços de mulheres em sua imaginação e que algum dia lhe trouxera prazer carnal. Será que ele era feliz? Será que elas eram felizes? Será que ele representava para elas apenas a sua virilidade?  Como lidar com tantas incertezas se sua única dor foi a de não ter sido príncipe na escola porque a professora preferiu um garotinho branco?

Uma mulher que gosta de mulheres suscita seu amigo a considerar que suas amantes são seres além de corpos que têm e dão prazer. Cada uma a sua maneira.

Este livro primoroso traz um emaranhado de histórias de encontros, desencontros, amores doloridos, contradições e complexidades em torno das relações amorosas. São histórias de mulheres negras apaixonadas pela masculinidade de um homem negro, porém o que mais me chamou atenção neste livro foi a facilidade que este homem espalhava filhos sem a menor responsabilidade afetiva e parental de seus atos. Chegava na cidade, conhecia uma mulher, despertava seus sentimentos, mergulhavam no amor ardente da paixão e ia embora. Nunca sequer pensou na possibilidade de deixar esta mulher grávida. Nunca cogitou que a mulher poderia estar esperando por ele. Sequer quis saber se seus filhos tinha a marca de um pai em suas vidas. A ele interessava apenas o prazer.

Fico me questionando quantos homens deixam suas marcas em muitas vidas através da sua ausência e o quanto este traço de falta fica marcado na existência dos filhos, pois na dinâmica familiar, a relação mãe/criança passa pela intermediação do pai, que é aquele que inscreve uma possibilidade para o sujeito em constituição.

Será que apenas com o lugar que a mãe oferece a este pai em seu discurso traz a legitimação deste pai na constituição subjetiva da criança? Ou será necessário que o pai real intervenha em carne e osso para atualizar concretamente este terceiro que intermedia a relação entre a criança e sua mãe? Para a psicanálise, a carência do pai real não significa a ausência de instalação do Nome-do-Pai como função psíquica, pois não há relação direta entre a carência ou não autoridade do pai nas famílias em como a criança se constitui psiquicamente.

Independent0e dos questionamentos sobre a ausência que um pai faz no aparelho psíquico de uma criança, este livro me fez pensar no que é um pai para uma criança, pois a pergunta “o que é um pai” é permanentemente colocada em análise quando escrevemos a nossa história e sempre vai haver lacunas.

Ficha técnica: Canção para ninar menino grande, Conceição Evaristo, 136 páginas, Ed. Pallas, lançado em 2022.

Lília Sampaio
Lília Sampaio

Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.

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