O bom novo velho sebo

A coluna de hoje é uma colaboração da jornalista e fotógrafa Edmara Silva. Amiga de longa data, ela adora cafés, boas conversas, livros e rolês aleatórios, não necessariamente nessa ordem. Ilustrando o texto, um desenho da Yas especialmente para a coluna.

Adentrei sem grandes expectativas e, logo na entrada, um sino suave anunciou minha chegada. Um amigável latido de boas-vindas ecoou, seguido por uma voz ao fundo: “Não se preocupe, ela não morde; é só para proteção. Tentaram me assaltar na semana passada.” A voz tomou forma em uma senhora simpática, com cabelos vermelhos que se destacavam entre as pilhas de livros. Ao lado dela, um cartaz dizia: ‘Fiado apenas para maiores de 100 anos’. Talvez porque ali era morada de centenários.

Se você nunca entrou em um sebo, recomendo. Entre poeira e livros, há histórias. Uma vez por mês, quando os planetas se alinham, entro em busca de tesouros que nem sabia que havia perdido: artigos de luxo, raros, que tiveram seu auge e agora esperam pacientemente nas prateleiras, às vezes por anos, décadas, aguardando olhares curiosos que os levem para casa.

Foi nessas visitas que encontrei um exemplar de Gal Costa. Um disco compacto com letras vermelhas, relegado a um canto empoeirado. Peguei-o, soprei a poeira e o entreguei a uma nova dona, em uma cafeteria elegante, trocando olhares apaixonados com algo que se ama. Este tesouro tem um lugar especial em nossa história. ‘Babados, xotes e xaxados… Segura as pontas, meu coração.’

Para alguns, este lugar pode ser visto como uma amálgama desordenada de quinquilharias, empilhadas umas sobre as outras – livros, CDs, vinis. É exatamente aqui que a saudade espera ser descoberta, escondida entre as prateleiras. A senhora me apresentou as diferentes seções, mas sua favorita, segundo ela, era a de livros de romance, aqueles vendidos em bancas de revistas com mocinhas virgens e mocinhos fortes em seu orgulho impetuoso.

“Minha avó não me deixava ler esses livros não, sabia!? Ela dizia que não eram histórias para moças, escondia todos quando eu chegava. No entanto, foi com esses livros que aprendi a gostar de ler.” A senhora pegou algumas autoras famosas dos anos setenta e disse, com entusiasmo: “Minha filha, eu lia tudo.'” Compartilhou em tom de segredo.

“Do que você gosta?” Parei por um momento, refletindo. Do que eu gosto? Na verdade, nem eu mesmo sei mais! Sinto-me como essas prateleiras que se estendem até o teto, repletas de palavras… esperando. “Bem, eu gosto de tudo”, respondi. Afinal, gostar de tudo já é gostar de alguma coisa, certo?

“Ah, mas não dá para gostar de tudo. Eu, por exemplo, tenho histórias de terror que não gosto, vampiros, por exemplo”, ela comentou. “Por quê?” perguntei, curiosa. “Porque já imaginou aqueles caninos cravados no meu pescocinho?” Ela soltou uma risada, e eu me uni a ela em concordância.

“Foi nessas visitas que encontrei um exemplar de Gal Costa. Um disco compacto com letras vermelhas, relegado a um canto empoeirado”. Ilustração: Yas Sousa

Ri e lembrei de uma moça que também não estava curtindo o encontro com um certo conde, mas no caso dela não era o medo dos caninos no “pescocinho”, era a diagramação de versos confusa do livro.

Fomos olhando livros e lombadas, clássicos, Diana Palmer, Johanna Lindsey, Barbara Cartland… Depois partimos para os vinis. De forma explicativa, ela me mostrava eles e, quando eu não os conhecia, ela cantava. Confesso que uma ou duas vezes me fiz de desentendida para vê-la cantando estrofes ritmadas e batendo os pés sem perceber.

Chegamos aos CDs, que eram levemente a paixão dela. Olhou alguns três e soltou: “Esses não posso vender, não.” Eu pedi para vê-los, ela de forma desconfiada e com ciúmes mostrou: “Mas não estão à venda, tá!? Eu gosto de escutá-los quando tô só e dançar.” A cachorrinha de guarda estava deitada atrás do balcão relaxada; uma vez ou outra soltava latidos em avisos.

Pegou um CD da Whitney Houston. “Esse é muito bom”, me mostrou. “Já viu o filme?”. “Não”, respondi meio envergonhada, eu sabia que era um clássico. “Ahhh, pois você tem que ver”, começou a narrar trechos. “O Guarda-Costas é lindo”, e logo emendou: “Isso aqui é música boa, não é essas de agora não.” Peguei tantos CDs que fiquei sem locais no balcão para ver todos. Ela tinha razão, eram bonitos; cheguei a viver a era dos CDs e os encartes com as letras.

Nisso, já iam duas horas de caça. Liguei para um amigo, grande motivador da causa que me presenteou com uma vitrola e minha recente descoberta paixão. Ele de lá, ia dizendo para cá quais CDs eram, com anos, datas. Em um dos áudios, ela de forma concisa soltou: “Traz ele aqui pra gente conversar, tem café.” Peguei um CD para ele de presente; afinal, organizamos alguns com sua ajuda.

“Quinze reais o CD”, ela abriu para verificar se estava tudo bem, viu que era um com dois CDs. “Ahhh, minha filha, são dois CDs, não dá pra ser 15, você entende, né? Mas, para você não ficar triste, pode escolher outro CD por dez.” Peguei um. “Esse aí é muito bom, sabia?” e cantou um trecho: “Morena, com que força você diz: morena. E aperta o meu corpo contra o seu. Sereno, seu olhar me leva ao delírio. Misterioso brilho da noite sem luar.” Reconheci Bethânia… “Vou levar”. Imaginei como é bom ter um olhar que leva ao delírio e acompanhar ele com verso de Bethânia em algum local de várias histórias que ela já deve ter embalado.

Alguns PIX depois, modernidade esta que, segundo ela, valeu a pena conhecer, saí com o anúncio da porta, o latido de ‘xau’ e alguns discos e a promessa de ver O Guarda-Costas. Meu novo local de conforto era o velho sebo, em uma rua com lojas, escondido em uma casa vermelha que abria em horários de sorte para os que conseguiam visitar.

(Edmara Silva)

Idayane Ferreira
Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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