O amor e o muro

Entre o homem e o amor, existe a mulher

Entre o homem e a mulher, existe um mundo

Entre o homem e o mundo, existe um muro.

(Antoinine Tudal)

O livro “As damas da lua” da escritora Jokha Alharthi foi escrito a partir da falta que a autora sentia de sua língua natal e de seu país de origem, Omã, uma sociedade regida pelas vontades dos jinns e por suas tradições particulares tão presentes em seu texto.

Como num sonho, a autora nos transporta para uma zona onde o espaço-tempo não importa. Poderia ser em Mascate, um vilarejo inventado, mas poderia ser em qualquer lugar em que sujeitos vivenciam suas histórias sem as amarras temporais.

Tal qual o inconsciente, o texto não é regido por uma cronologia temporal: os personagens viajam em suas lembranças ao mesmo tempo em que está vivendo seu dia-a-dia, pois assim como a faixa de Moebius, o que está dentro, está fora. “Do pequeno mundo. Do imenso mundo”.

Vamos conhecendo as histórias contadas por um narrador muito conhecedor dos desejos dos personagens, pois aponta para o particular de cada um quando nos mostra os seus desejos mais íntimos. Freud nos fala que os sonhos são acidentes do desejo, pois eles tinham que ficar guardadinhos em nossos inconscientes, mas eles dão um jeito de vir à tona.

Mayya, com seu amor inconfessável por um rapaz que estuda em Londres, porém nomeia a sua primogênita de London; Abdallah e seu desejo de ser amado pela mãe, pelo pai e por Mayya; Zarifa que se cala e faz de Abdallah todo seu; Massúda que se dobra às sua servidão; Sálima que não consegue saciar a sua fome de amor com comida; Azzan que assim como os versos do poeta, quer fazer um com sua Qamar, que traz o amor em seu nome próprio; Assmá e seu desejo de saber do que é feita uma mãe; Ankabuta e seus tecidos furados pelos gravetos; Sanjar e Habbib e o sonho de liberdade; London, que desvela o que é o amor para a sua mãe; Khálid e sua bela arte de deixar a realidade em suspensão; Primo Marwin que sofre por carregar o dito materno; Muhammad que escancara o desejo do pai e Khawla que faz do aforisma lacaniano uma realidade: a falta é a mãe do desejo.

A lógica da psicanálise é a lógica da incompletude, pois sempre tem algo que falta. Diferente do animal que encontra um objeto na natureza que o preenche e o completa, nós humanos somos insatisfeitos por natureza. E não é a satisfação das nossas necessidades: comer, dormir, brincar, fazer amor, trabalhar, que apazigua nossos corações e corpos. É uma falta outra e este livro nos dá notícias das faltas que cada personagem carrega em seu íntimo. Mesmo quando nada supõe saber sobre este vazio.

A impossibilidade de encontrarmos uma representação última, simbólica ou imagética para dizer do que queremos é o que inscreve a falta atada ao desejo, assim como a incerteza de Abdallah que o arbusto de manjericão pode ter matado sua uma mãe.

A falta quando não paralisa na queixa, é o que move o desejo. Afinal, só há desejo, se houver falta. E o desejo na psicanálise não tem objeto o desejo é o desejo de desejar.

Diante da insatisfação, a psicanálise exige que ao invés de delegar sua felicidade ao objeto imaginário que lhe falta, o sujeito pode se responsabilizar e inscrever na vida esse desejo estranho, esquisito e singular. “É o desejo ardente de saber”.

Abdallah que entende muito sobre o amor, se questiona por que Mayya se machuca ao ver sua filha sofrendo por amor. Será que é por que Mayya nunca soube o que era o amor? “Como pode uma casa caber tanta paixão? Como conseguiu o pequeno quarto aguentar toneladas de nuvens que guardei nele para que eu possa nelas caminhar? Como as paredes não se abalaram entre as mãos do tormento da minha insuportável alegria?”. Abdallah se questiona e percebe que Mayya não deu lugar a paixão que ele sente por ela, pois Mayya com seus olhos colados na máquina de costura nunca conseguiu enxergar a vastidão do seu amor e de sua prisão.

“Você me ama? Mayya ri, ri tão alto que todas as paredes da casa desabaram. Mayya, com a sua inabilidade para amar nos faz questionar se o amor se trata de duas bandas de uma mesma laranja que se juntam ou será o amor um muro entre o homem e uma mulher?

“Entre o homem e o amor, existe a mulher;

Entre o homem e a mulher, existe um mundo

Entre o homem e o mundo, existe um muro”

Este livro com suas cores e cheiros e sabores e fantasias nos aponta para a realidade do inconsciente e para a impossibilidade de se fazer um. Abdallah, um apaixonado lacaniano, na qual cada frase sua sobre seu amor por Mayya nos faz questionar sobre o que é o amor e perceber que só há desejo quando há a falta.

Ficha técnica:

Título: Damas da lua
Autora: Jokha Alharthi
Editora: Moinhos
Edição: 1ª
Ano de lançamento: 2020
Número de páginas: 23

Lília Sampaio
Lília Sampaio

Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.

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