Levanta desse sofá, Menina!

Era uma entrevista de emprego online em uma dessas startups posudas, e ela jamais esperaria uma pergunta tão clichê: “Como você se imagina daqui a cinco anos?”. Ficou um pouco confusa, mas respondeu com a suposta coerência que sua rapidez de raciocínio permitiu. Estaria morando em outra cidade, com a carreira estabilizada, com seu apartamento próprio, talvez começando a pensar em filho por adoção e, por fim, feliz.

Respondeu como se tudo estivesse perfeitamente encaixado e lógico, mas ao fechar a boca sentiu uma explosão interna. Dizer feliz incomodou, apesar de, sim, a felicidade ser um pilar importante para ela. Aquela pergunta, aquela resposta abriu uma fenda em sua tela de projeção. Percebeu que estava sozinha em um futuro aparentemente perfeito. 

Abaixou a tela do notebook com a certeza de que a próxima sessão de análise seria quente. Sabia que nem precisava anotar aquele insight, pois ricocheteou em cada célula do seu corpo. Havia chegado a hora de lidar com aquele silêncio. 

Dias depois, diante da analista, sentiu tudo novamente mover dentro de si. Fez a si mesma uma pergunta: “Será que, quando imagino amar, o faço como uma menina, uma criança embebida em fantasias? Será que estou procurando o amor paterno e ao mesmo tempo sei que não encontrarei?”. 

Fechou a boca, e imediatamente percebeu que tinha acordado a mini querida com quem compartilha o existir. Ela, a Mulher, já sabe quando a Menina aparece. A emoção subiu às bochechas, que teriam ficado vermelhas não fosse uma mulher negra retinta. O peito revirou como uma máquina de lavar roupas ao iniciar seu ciclo de limpeza. A garganta apertou. Mas o tempo da sessão acabou. 

Desligaria a videochamada com algum alívio se a orientação “escreva sobre isso” não tivesse, imediatamente, iniciado uma construção de 20 andares em sua cabeça – a Mulher é um ser pensante, até demais. Precisaria olhar para como usava o trabalho como refúgio, precisaria pegar na mão da sua mini querida, a Menina, e voltar pelo menos 20 anos no tempo, voltar para o dia da morte do próprio pai. 

Há muitos alertas sobre a importância do “agora” em livros destinados a turbinar o autoconhecimento. O “agora” é também elemento central para o budismo, para as práticas de atenção plena. É tema comum, daqueles que aparecem pelo menos cinco vezes em qualquer rolagem de tela despretensiosa nas redes sociais. Quem nunca se deparou com o provérbio chinês que diz “o passado é história, o futuro é mistério e o hoje é uma dádiva. Por isso é chamado de presente”? 

Às vezes queremos mesmo que o presente seja só o presente, principalmente naqueles momentos em que revirar o passado é levantar a casquinha de uma ferida que escolhemos, mesmo que de forma inconsciente, fingir que não existia. Mas na passagem do tempo há uma dinâmica que se impõe. Se algo do passado te assombra no presente, ele não passou. É um dado do agora!  

E ela, então, estava no sofá da casa de seus pais naquela fatídica quarta-feira, olhando para aquela porta cinza de uma sala imensa. Estava confusa. Estado nada incomum para uma criança de 10 anos. O pai voltaria que horas? Não voltaria, infelizmente. Nunca tinham conversado com a Menina sobre a morte. Como seguir depois de ver um amor – o grande amor – partir? Ela não tinha resposta. Também nunca teve coragem de perguntar a ninguém. Na verdade, nem conseguia elaborar o que sentia. Fez daquela dúvida/dor um segredo profundo.  A rotina familiar assumiu a mesma dinâmica. Ninguém sabia ao certo como seguir. Mas seguiu assim mesmo.  

Na cama com seu caderno em mãos, a Mulher “assistiu” à cena que se desenhou ao fechar os olhos. Sentiu. Chorou. Percebeu que, em matéria de amor, continuava sentada no sofá de casa, esperando alguma explicação sobre tudo. O seguir que precisou improvisar nos anos seguintes à morte do pai lhe custou muito, inclusive dar pouco espaço para qualquer lembrança dele. Se lembrar causava dor, o melhor seria não lembrar (como se fosse possível). 

“Pelo visto eu só me permitir levantar daquele sofá para trabalhar, dar conta da vida, já que me convenci de que precisaria fazer isso sozinha. Guardei o luto que nem sabia como viver”, escreveu em seu caderno como tentativa de compreender como teria sedimentado o futuro de solidão que lhe escapou na entrevista. 

“Se você fecha a janela de casa para que o vento não lance pelos ares algumas folhas que estão há dias em cima da mesa, você também não poderá sentir a gostosa sensação do frescor acariciando seu rosto. E quantas vezes seguimos assim na vida, crentes de que só temos duas opções extremas? Eu, sem perceber, fechei a porta que me permitia a conexão com meu pai. E ficou tudo lá, até mesmo aquele amor gostoso, alegre e seguro.”

A lágrima desceu quente e longa pelo seu rosto. Abraçou a si mesma. Acolheu a si mesma. Ela já sabe que algumas descobertas são dolorosas, mas também sabe que são libertadoras. Ela já sabe que tem muito a organizar nesse andar recém-descoberto da casa interna. 

Apagou a luz e deitou para dormir. O despertador a arrancaria da cama 6h da manhã do dia seguinte.

Mari Leal
Mari Leal

Mulher preta, baiana do interior, mas acolhida pela capital (Salvador). Jornalista de formação, fui pescada para a cobertura política muito cedo, e aí estou há uma década. Na vida, um ser que deseja experimentar a multiplicidade do Universo e dos universos (humanos). Um coração pisciano que deseja desbravar o desconhecido. Amo os clichês e a forma como se mostram imperativos na vida cotidiana. Simples e grandiosos, acredito que carregam os segredos de um viver “ser”. Como Belchior, “não quero o que a cabeça pensa, quero o que a alma deseja”. E talvez seja este o meu principal desafio. Neste espaço, te convido para refletirmos sobre o cotidiano e como a vida prática nos atravessa.

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