Entrevista com o fotógrafo Genilson Guajajara: “Nem tudo que é mistério pode ser revelado, só sentido”

Genilson Guajajara conta sobre a sua relação com a fotografia e como, a partir dela, luta e guarda a memória viva do seu povo.

Genilson Guajajara. Ilustração: Idayane Ferreira

Genilson Guajajara, 29 anos, nasceu, vive e trabalha na Aldeia Piçarra Preta, uma das comunidades que compõe a Terra Indígena Rio Pindaré, localizada no município de Bom Jardim – MA, situada a cerca de 30 km da cidade de Santa Inês e a 260 km da capital São Luís. O território sofre com os conflitos e impactos causados pela BR 316, pela Estrada de Ferro Carajás e também com invasões. Foi na fotografia que Genilson encontrou uma forma de lutar e de manter viva a memória do seu povo.

Como fotógrafo indígena e comunicador popular, formado em cinema indígena pela VNA (Vídeos nas Aldeias), registra os momentos ritualísticos da sua comunidade, contribuindo para a proteção do território, da cultura e dos ensinamentos ancestrais. Faz parte do Coletivo Pinga-pinga e da Agência Zagaia, iniciativas de comunicação popular. Ele conta que o forte do seu registro fotográfico está na ancestralidade.

“A forma que, dentro dos rituais, acontece essa energia, o que a gente não pode ver. Nem tudo que é mistério pode ser revelado, só sentido […]. Existe essa sensação, essa energia, esse contato das pessoas com outro mundo, o mundo espiritual. Então, quando existe essa conexão com esse universo espiritual, aí fica bonito, é bonito da forma que a gente entra dentro desse universo e como o corpo sente isso”.

Suas fotografias têm ganhado repercussão dentro e fora do Brasil e já foram utilizadas em veículos da Europa, como o Euro News e expostas em uma galeria em Londres. Genilson também foi indicado ao Prêmio Pipa 2021, um dos mais relevantes prêmios brasileiros de artes visuais. Ele explica que não busca repercussão enquanto fotógrafo, mas que a fotografia é uma forma de ampliar a voz das comunidades: “ a voz a comunidade já tem, a gente só precisa de alguém que possa levar essas falas para outros ambientes, então a fotografia é a forma que eu encontrei de fazer isso”.  Em entrevista, Genilson conta um pouco sobre sua fotografia, a memória do povo Guajajara, os efeitos da pandemia e o poder da imagem como ferramenta de resistência.

Qual tua relação com a fotografia?

Eu acho que é transmitir esse sentimento que eu tenho de vivência mesmo dentro do território e o que eu vejo também, eu acho que da forma que as pessoas se encontram, se movimentam, se expressam. A fotografia me dá possibilidade de mostrar isso para outras pessoas, essa conexão com a natureza. Acho interessante porque eles demonstram esse sentimento através do corpo em movimento, da expressão, sabe? Do contato, da forma que eles falam, da forma que as crianças se sente libertas, livres dentro de um Igarapé tomando banho. Então, eu acho que a fotografia me dá a possibilidade de mostrar isso para as pessoas.

Quando e como você começou a fotografar?

Eu acho que foi 2015… foi 2015. Eu acho que a formação política [Atividade realizada pela Justiça nos Trilhos com jovens de comunidades cortadas pela Estrada de Ferro Carajás] me ajudou muito nisso e foi dentro da formação política que eu conheci a fotografia, a importância dela. E eu sempre tive curiosidade de… sei lá, a gente ter uma formação para registrar os momentos de rituais aqui do território. Então, o objetivo, meu objetivo foi esse de aprender a fotografar, a manusear um equipamento para mostrar a nossa realidade, o dia a dia, o cotidiano. Então acho que isso tem dado certo assim. Vai fazer já uns 10 anos, 10 a 7 ou 9 anos, não sei. Mas foi bem antes com o celular, a gente começou com o celular. Depois, em 2017, a gente começou pelo VNA [Vídeo nas Aldeias] um curso que teve dentro do território, onde foi selecionado seis jovens da Terra Indígena Rio Pindaré pra fazer o curso, aí eu fui também um dos selecionados. E aí a gente teve esse contato assim mais com câmera profissional e a partir daí eu fui produzindo.

Genilson, como é que a tua rotina de fotografia? Você costuma fotografar todos os dias? Sai para fotografar ou tipo assim “vou fotografar um determinado tema”? Como é a tua rotina como fotógrafo?

Às vezes eu saio, mas não é uma coisa mesmo assim todos os dias. Por exemplo, eu faço muitos trabalhos dentro da comunidade junto com as pessoas que eu vou fotografar, então isso me dá, não sei, mais uma possibilidade de sentir a vivência deles também. Tipo, eu vou fotografar os brigadas [Brigadistas indígenas] e aí eu passo o dia todo acompanhando o trabalho deles. E aí eu vejo a dificuldade que eles têm, né? De fazer o combate aos incêndios e como que a rotina deles também, é difícil. Então, é poder vivência um pouco disso faz com que na minha foto eu transmita essa dificuldade que eles têm, o trabalho, todo o esforço. Mas é, tipo, tem uma semana que eu fotografo um final de semana e, às vezes, eu passo um dia sem fotografar. Mas, eu penso muito durante esses dias que eu não fotografo, [sobre] o que eu quero fotografar. Então, quando eu vou para um lado, sei lá, comer peixe, pescar com o pessoal, sempre levo o meu equipamento. E aí lá também, a natureza me traz isso, nessa reflexão de o que eu quero fazer, que foto eu penso em fazer. Aí, tipo, vem tudo isso assim, a questão do enquadramento, do que eu quero fazer nesses momentos em que mais eu tô conectado com a natureza. Vem esse sentimento assim, de dizer: “olha, tu vai fazer essa foto”, “quando tu for fotografar, tu faz desse jeito”, esse sentimento. Por isso que quando eu vou fazer uma imagem diferente, assim, acho que é mais mesmo trazer um impacto positivo… fazer com que as pessoas vivam também um pouco daquilo.

Tem algum tema que você goste mais de fotografar, por exemplo, eu vejo que tem muitas fotos de crianças, de pessoas mais idosas, fotos do território… Tem algum tema que você “poxa, esse tema eu gosto muito de fotografar”, ou não, ou todos os temas são teus preferidos?

Sim, eu não vejo muito isso não, questão de tema, mas o que eu acho mais assim forte é a questão da ancestralidade. A forma que, dentro dos rituais, acontece essa energia, o que a gente não pode ver. Nem tudo que é mistério pode ser revelado, só sentido. Então, quando por exemplo, tem uns cantores, né? Esse contato com o maracá [instrumento musical, feito por uma cabaça e preenchido por pedrinhas ou sementes), essa sensação, essa energia, esse contato das pessoas com outro mundo, o mundo espiritual. Então, quando existe essa conexão com esse universo espiritual, aí fica bonito, é bonito da forma que a gente entra dentro desse universo e como o corpo sente isso, né? Então, fotografar esse momento para mim é muito bom, causa arrepios e frio na barriga. Assim, eu acho que fazer isso e quando a gente compartilha isso com outras pessoas, elas acabam sentindo também a mesma sensação.

Eu gostaria que você me falasse o que a fotografia representa para o registro da memória Guajajara.

Ela representa a continuação de um povo. Então acho que guardar isso é também dá possibilidade para que outros lá na frente aprendam, né? E tento saber que história essa fotografia quer falar, mostrar ou falar. E eu acho que é mais importante também a questão da cultura, não deixar ela se acabar, porque, apesar dos impactos que a comunidade de sofre, ela continua ainda viva e ela tá cada vez mais se fortalecendo. Então, acho que isso também é uma coisa assim importante para a gente de manter, né?

Genilson, a gente ainda está vivendo uma pandemia, agora deu uma amenizada, mas já houve um período muito intenso. Como que foi e tem sido esse período de pandemia para tua comunidade? E, foi possível, a partir da fotografia fazer algo pela comunidade, ainda que fosse registrar a visão da sua aldeia em relação a vivência da pandemia?

Sim, foi muito difícil no início porque era um vírus que ninguém conhecia e aí algumas informações… desinformações, na verdade, chegaram dentro das comunidades fazendo o povo ficar um pouco apavorado e a gente teve o trabalho de se resguardar e fechar também as aldeias para não deixar as pessoas tá entrando de fora e nem uma contaminação. Isso foi feito bem antes mesmo de ter algum caso na cidade próxima. As lideranças com os profissionais de saúde se reuniram e fizeram uma reunião de como que ia ser, caso tivesse um caso bem próximo ao território, né? Então, isso foi um ponto bom porque a gente teve tempo também de se organizar de como que ia ser essa logística de estar saindo e entrando, quem iria ter prioridade, né? Isso tudo foi discutido nesses momentos e eu lembro que o primeiro caso que a gente teve foi dos agentes de saúde, enfermeiro. Foi muito difícil porque todo mundo tava com medo e a partir disso teve outros casos assim, teve um, dois, três casos… aí teve dois óbitos, dois anciões. Foi muito difícil porque teve muito caso de ansiedade, de insônia também, das pessoas que estavam preocupadas de acontecer alguma coisa pior, caso fossem contaminadas. E aí depois disso, eu tive que fazer alguns trabalhos assim das crianças que não podia ir na casa de outros colegas porque tinham medo de se contaminar ou contaminar alguém. Eu tive pegando todo o material na enfermaria, com todo cuidado e de longe eu pude fazer alguns registros das crianças com a bola sentado em frente à casa olhando pro campo de bola, onde eles eram acostumados a brincar todos os dias. Acho que eu fiz esses, alguns desses registros de momento de solidão sei lá deles. E o outro é justamente que eu fiz da Djelma [Guajajara, jovem da comunidade] com a máscara de folha que simboliza o poder da natureza, a medicina, o quanto isso é importante para nós… então, isso foi bom porque a foto também repercutiu e durante isso as comunidades começaram a buscar mais usar a medicina tradicional que ajudou muito nesse período de pandemia. O tratamento foi mais com a medicina tradicional de dentro do território. Então, a partir disso as comunidades se preocupam de fazer quintais onde tem boas plantas, um hospital com medicina tradicional. A gente está nesse processo e também na questão de reflorestar. Então, acho que isso foi uma coisa que pôde trazer uma reflexão bem importante assim pra gente durante esse período.

Como você se sente com a repercussão do seu trabalho, chegando mais longe, em mais lugares e pessoas? Você sente que as fotografias e as repercussões ajudam a mudar um pouco essa visão que as pessoas têm do que é ser indígena, do que é viver na aldeia, do que é uma vida de comunidade?

Sinto. Na verdade, eu me sinto grato, eu não imaginava que ia chegar tão longe, né? Eu nunca tive esse desejo assim, meu objetivo é só mostrar o lugar que a gente tá, guardar isso, né? Escrever outras coisas, esse sentimento que eu sinto de poder tá dentro desses espaços e viver isso, mas foi bom porque ninguém conhecia o território T.I Rio Pindaré e a imagem tem essa força de chegar em outros lugares assim. Então, pra mim foi importante porque existe um povo aqui, toda uma organização também e a forma que esses grupos atuam para proteger o território, então a fotografia me deu a possibilidade de mostrar isso, de levar a luta deles para outros lugares. A voz a comunidade já tem, a gente só precisa de alguém que possa levar essas falas para outros ambientes, então a fotografia é a forma que eu encontrei de fazer isso.

Genilson, eu gostaria que você contasse um pouco sobre o Projeto Memória Viva Guajajara, e sobre a Exposição Fotográfica Tenetehar Ywy Pinare Iwar Rehe Har,  que vai acontecer na Casa do Maranhão, em São Luís, entre 21 de setembro e 21 de outubro.

O objetivo dele é mostrar a nossa trajetória de como a gente começou. Fizemos os primeiros registros na época, acho que foi 2019, saiu o Edital da SECMA [Secretaria do Estado da Cultura, do Maranhão]  e a gente escreveu esse projeto que o objetivo dele é fortalecer a cultura e trazer mais um público jovem para dentro dessa narrativa do que a gente quer mostrar. Acho que de um tempo para cá, as pessoas não tava muito, digamos assim, não acompanhava mais de perto os rituais, as discussões. Então, o público maior nessas discussões eram os professores e os adultos. Então, os jovens quase não procuravam muito participar disso… então, com a fotografia a gente trouxe essa galera. A gente começou a compartilhar isso e eles viram que a cultura é bonita. Porque quando a gente tá dentro do espaço, a gente vê as coisas tudo, tudo normal, natural. Então, quando você fotografa algo diferente dentro daquele espaço que eles acham que é uma coisa que eles estão acostumados a ver, aí a gente para os jovens, para refletir sobre o que ele está acostumado a vivenciar, mas que no momento a visão está voltada para outras coisas e acaba esquecendo de dá atenção a isso. E o projeto é isso:  a gente selecionar algumas imagens de movimento, dos momentos ritualístico, dentro do território e o dia a dia das pessoas, das crianças brincando dentro dos lagos, o pessoal pescando, caçando, fazendo algum tipo de comida. E isso foi no início, quando a gente começou a fotografar e aí eu olhava mudando até agora 2020, 20… 21… 22. E a gente selecionou fotos assim desses anos, do início até agora aí a gente tá mostrando também como o nosso olhar mudou, né? Então, a gente fez esse acervo, uma seleção e mostra isso dentro da exposição que vai ser realizada. E o objetivo é esse: é trazer uma provocação tanto para a gente do território como para as pessoas de fora, que vivem dentro do estado que tem uma cultura bem bonita e uma delas também é do Povo Guajajara, e que algumas pessoas acabam ficando distantes de conhecer.  O objetivo também é desconstruir alguns pensamentos em relação ao modo de vida do povo que vive aqui.

Você falou sobre visão, como o olhar de vocês foi mudando ao longo dos anos. Você consegue descrever que tipo de mudança foi mais significativa: é a mudança do olhar, é a mudança do território, é a mudança dos rituais? Quais foram as mudanças você foi sentindo ao longo desses anos, em ti mesmo como fotógrafo, na tua fotografia e no território?

Eu como fotografo o que mudou em mim foi mais a questão de ouvir, ouvir e esperar e falar também. Eu acho que a gente vai aprendendo várias coisas nesse processo também e que imagem eu quero mostrar também. Eu acho que antes eu era bem, digamos, eu era bem apressado, de querer mostrar alguma coisa, de falar alguma coisa, mas eu aprendi que tudo tem um momento certo. Eu acho que mudou também a participação dos jovens aqui. A gente tá com movimento bem grande da juventude, nessa questão de se envolver bem mais com a cultura. Eu acho que isso também foi um ponto positivo que a gente trouxe, né? A gente tá construindo isso junto também. E isso tem também influenciado outros jovens a aprender a fotografar e fortalecer a nossa luta. E em relação acho que ao território também, a gente tem trazido pauta que pudesse ser discutido dentro do território como fora, pra a questão também da preservação do território. Então, acho que isso foi um ponto bem importante assim durante esse processo.

A Exposição Fotográfica Tenetehar Ywy Pinare Iwar Rehe Har  acontece na Casa do Maranhão (São Luís) entre os dias 21 de setembro e 21 de outubro de 2022, e é coordenada por Genilson e Antonyo Guajajara, outro fotógrafo indígena. Acompanhe as redes sociais da Exposição e do Genilson Guajajara.

Confira na galeria alguns desses registros:

Idayane Ferreira
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