Entrevista com o fotógrafo Daniel Sena: “Eu tive vários pequenos trabalhos que só quando soma todos acaba ficando grande”

Daniel Sena conta sobre a sua relação com a fotografia, seus projetos e seu desejo de criar uma escola de fotografia

Daniel Sena. Ilustração: Idayane Ferreira

Daniel Sena, 39 anos, nasceu em Taubaté (SP), mas vive e desenvolve sua arte em Imperatriz (MA). Jornalista por formação, fotógrafo por ofício e dedicação, professor por desejo de compartilhar conhecimento. Seu olhar fotográfico é tão múltiplo quanto múltiplas são as temáticas que tem abordado durante os 10 anos de sua trajetória profissional. Junto com a fotógrafa e também jornalista, Rosana Barros, criou o site Imperatriz Fotos, projeto atualmente desativado que se dedicou principalmente a registrar a cidade de Imperatriz. A sua relação com a imagem veio antes do que, propriamente, a sua relação com a fotografia. “Meu pai era um entusiasta da imagem […], ele cismou de comprar [equipamentos] e desde muito jovem, ele dava o acesso para nós”. Foi assim que Daniel começou, ainda na adolescência e de maneira despretensiosa, a fazer registros da família.

Na fase adulta e já universitário do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), foi que a fotografia realmente nasceu como ofício. “Eu nunca gostei muito de estudar, não (risos), mas a fotografia foi uma coisa que me deixou muito bem à vontade. Eu queria falar através das imagens”, explica. A partir da fotografia já ajudou a denunciar o descanso do poder público com a Caema, bairro periférico de Imperatriz que registra altos índices de violência. Já captou acontecimentos históricos e culturais da cidade. E eternizou momentos.

“Eu tive vários pequenos trabalhos que só quando soma todos acaba ficando grande, mas são pequenas historinhas assim, então sempre digo ‘rapaz, já fiz de nascer a senhorinha de 100 anos”.

Em entrevista, Daniel Sena conta sobre a sua relação com o ofício, seu desejo de criar uma escola de fotografia e de produzir um livro fotográfico sobre o bairro da Caema, fala do documentário que fez como conclusão de curso e desmitifica o uso da cannabis na fotografia.

Li uma postagem sua, uma vez, em que você falava da importância do seu pai, Agamenon, para o seu gosto pela fotografia. Sei também que na sua casa há muitos álbuns de família. Então, gostaria que você começasse por aí, por essa relação emocional e afetiva com a fotografia.

Cara, assim, meu pai ele era um entusiasta da imagem! Era uma pessoa analfabeta que veio do Ceará, daquele sertão… aquela história do cearense que foi para São Paulo tentar a vida. E é uma história na época dele muito repetitiva, né? Os nordestinos construíram São Paulo, enfim, só contextualizando aqui. Aí o pai, ele chegou em São Paulo, depois conheceu a mãe. Enfim, aquela história. E aí lá, quando eu tinha mais ou menos 6 anos, 7 anos, eu lembro que a galera fazia muito casamento, essas coisas assim, e aí meu pai resolveu que ia ter uma máquina de filmar. E o bicho nunca tinha trabalhado com isso, nunca… nada. Só que eu não sei de onde surgiu para ele essa vontade de ter uma máquina de filmar. Ele comprou uns equipamentos que, para a época, acho que pobre nem podia comprar e ele cismou de comprar e desde muito jovem, ele dava o acesso para nós, sabe? Então, eu com 6, 7 anos de idade, sabia colocar uma fita na filmadora, abrir, usar um vídeo cassete.  Poder mexer no que, para a época, era muito moderno. Eu chego a dizer que ele tinha câmeras que eram melhores que as câmeras usadas pelas TVs aqui da região, sabe? E era engraçado que ele não ganhava grana com isso, não. Ele gostava da parada de registrar, de filmar. Se vivo ele fosse, eu também gostaria de fazer essa pergunta hoje, ‘Mas por que comprou essa câmera?’. Porque eu tinha desde muito cedo esse contato com a imagem, não a fotografia em si, mas vinha de filmagem. Só vim perceber essa influência quando já tava na universidade, eu já tinha mais de 30. Como aquilo ali influenciou o que eu tava fazendo. Eu nunca gostei muito de estudar, não (risos), mas a fotografia foi uma coisa que me deixou muito bem à vontade. Eu queria falar através das imagens e nisso daí foi quando eu ‘Aí, cara de onde vem a influência?’ Claro! Meu pai sempre deixou as portas abertas, né? Para que a gente pudesse aprender pela curiosidade. Enfim, hoje eu gostaria de vê-lo, gostaria muito, mas eu, às vezes, imagino até como teria sido ele hoje nos dias modernos com essas máquinas todas aqui.

Depois desse período, dos seus 6, 7 anos, até chegar lá na universidade, você ainda teve outros contatos com a fotografia?

Tinha demais, demais, porque, aqui, você sabe, aqui em casa tem muita fotografia e tal. Muitas delas foi eu que fiz, lembro quando, mais ou menos assim, tinha uns 13 anos, aí tinha umas máquinas aqui, cara, ficava fotografando eu e meu primo, minha irmã… a gente pegava máquina, tirava aquelas 36 poses, corria para revelar, só que era uma coisa assim, não tinha nenhum olhar fotográfico. Tinha muita coisa para registrar não, eu vou só tirar foto aqui: tira foto de fulano, tira foto de sicrano. E sempre, mano, por mês um dinheiro absurdo para ir ficar revelando fotografias, mas só que todas de âmbito familiar, de pessoas, ninguém de nós tiramos fotos, por assim dizer, de uma paisagem, mas sempre tirava muitas imagens. Era uma grana que nós gastávamos, em vez de comprar figurinha na banca, a gente ia gastar era com revelação de fotografias. Adorava tirar foto.

Antes a gente contava a quantidade de poses e tentava aproveitar bem para o registro da família. Mas quando revelava sempre tinha uma foto que queimava ou que tinha se sobreposto a outra e já era… Olha só, a gente revelava fotografias (risos)! O que é bem diferente com a fotografia digital hoje em dia. O que você percebe de mudança de olhar e de registro fotográfico analógico, em que a gente tinha quantidade fechada de poses, e a partir do digital, em que você pode fazer mais fotos e testar mais vezes?

Olho vermelho, hoje, eu entendo o que causava aquelas coisas todas. Eu tenho explicações da ciência para explicar porque que aquela foto ficou com olho vermelho, porque que aquela foto tá sobreposta. Hoje, eu consigo entender exatamente os porquês e é legal isso de imaginar ‘Poxa! Se eu tivesse o conhecimento naquela época, que eu tenho hoje!’. Enfim, é engraçado essa de entrar nesse assunto, porque uma coisa era eu tirar foto da família e todo mundo gostar de imagem e depois, quando eu me vejo na profissão, muitos anos depois, né? Hoje, eu posso parar para pensar assim ‘Nossa, como era antigamente e como é hoje, eu participei das duas, né?’. Eu sou de 82, passei por essa mudança e tem vários pontos que a gente pode falar. Um deles, por exemplo, a quantidade: hoje, se trabalhasse com uma quantidade menor de imagens, acho que você fica mais seletivo, você fica mais para pensar e isso falando no analógico, né? Porque se eu for para cobrir um aniversário tem 36 poses para fazer, meu Deus! Eu fico imaginando ‘E agora? ’. Só que assim, eu acho que essa seletividade antiga formava melhor os fotógrafos do que forma nos dias de hoje a ferramenta de hoje. Você vai num evento e tira mil fotos. Antigamente, você levava cinco filmes de 36 poses! Eu sempre falo que tenho que fazer a minha média fotográfica de evento ou de qualquer coisa que seja e é 3 por 2:  a cada três cliques eu acerto duas imagens. Quando não tá nessa média ou é porque o evento é muito difícil, a coisa tá pegada e enfim, é sempre muito complicado. Já antigamente eu não trabalhei [com a fotografia analógica], mas eu fico imaginando assim ‘Meu Deus, o cara pega a imagem que ele tem, ele tira foto, ele não vê, ele não sabe se aquela configuração tá boa para aquele momento’. Então, eu acho que as pessoas antigamente eram muito melhores, para ser bem como fazer uma comparação, embora eu não goste muito de fazer comparações. Antigamente, eu acho que os fotógrafos eram melhores porque eles tinham que ser mais seletivos, eles tinham que acertar, tinham de entender mais do equipamento. Hoje em dia, meio até que banalizou. Tem evento que eu já fiz, principalmente no começo da correria, da minha história com a fotografia profissional, já fiz evento que eu tirei 5 mil fotos! Para quê? Você não consegue nem olhar para aquelas imagens. Desses comparativos, eu gosto de filosofar sobre essas possibilidades e eu tenho vontade de usar o filme, só que pelo acesso, que é caro, é uma tecnologia cara, depende de produtos químicos para revelar, essas coisas todas, eu ainda não tive a oportunidade de fazer esse regresso com o meu olhar de hoje. Eu gostaria muito um dia começar a pegar filme e colocar numa máquina, poder fazer para testar mesmo, sabe? Acho que vai ser uma das coisas que eu ainda vou fazer nessa vida.

Para a conclusão do curso de Jornalismo você fez um documentário com fotógrafos da região. Por que um documentário e não algo fotográfico? Imagino que o audiovisual, embora uma área irmã da fotografia, traga outros desafios. [Documentário Analógico, Digital. Da película ao megapixel]

Quando entrei na universidade, por exemplo, meu desejo era trabalhar com filmagem, com outras coisas que não eram a fotografia. A fotografia aconteceu na minha vida profissional e eu tive pessoas que me mostraram o caminho já. É engraçado, né, mano? Eu passei oito anos na universidade e para mim, fazer o documentário era mais fácil, mais rápido para fazer do que fazer um puta de um livro de fotojornalismo que era o que eu gostaria de ter feito, mas não dava tempo. Ela queria me tirar da Universidade logo, eu só tinha oito anos lá (risos)! Eu precisava de pelo menos mais uns dois anos para conseguir fazer meu livro do jeito que eu gostaria. E aí eu acabei fazendo isso daí, porque tem a ver com um tema que eu gosto, também me identificava, fui ouvir histórias de fotógrafos. Escolhi quatro, se não me engano (risos). Aqui, é porque já foram uns dias já, pode faltar memória de alguma coisa aí, mas eu peguei uma pessoa da época do analógico que começou lá analógico, tirava fotos. Aí, ele explicou todo o processo, como é que era os primeiros lambes, as coisas assim bem antigas mesmo, que eu também tava muito interessado em ouvir, saber. Aí peguei um que ele trabalha registrando casamentos e as entrevistas eram tão gostosinhas de estar conversando. E aí depois, teve a Rosana. A Rosana, engraçado, foi a única mulher e ela tem um processo que é assim: ela começa no analógico, com a máquina de filme e tal, ela se profissionaliza já era digital e depois começa a fazer pinhole [do inglês pin-hole – “buraco de alfinete”, denominação para máquina fotográfica sem lente]. Ela usava umas caixinhas de fósforo, colocava um filme…ela consegue dar a volta no tempo, sabe? [do analógico para o digital e depois para o analógico de novo] e ela gostava muito disso.  Conversei com o cara de um estúdio [de revelação de fotografias], buscava todo o processo químico, como ele chegou aqui em Imperatriz. Enfim a ideia [do documentário] era que falássemos do analógico ao digital. Mas, sinceramente eu gostaria de ter feito um livro fotográfico, mas [a universidade] não me daria mais dois anos.

E sobre qual tema teria sido o livro de fotojornalismo que você gostaria de ter feito?

Eu tenho uma ligação muito forte com o bairro da Caema, aqui em Imperatriz. Acabei convivendo lá e lá foi minha verdadeira escola, a escola de fotografia. E foi uma escola de vida, principalmente, então eu passei, acho, quatro anos da minha vida quase que ia lá diariamente. Conheci vários sábios, várias pessoas de conhecimento popular, desde o remédio até filosofias. Conheci tanta gente e era tudo tão humilde, era uma coisa tão massa, me apeguei tanto ao bairro. E ele foi me moldando, foi me ajudando a me tornar fotógrafo, porque me permitiu fotografar lá, as pessoas me aceitavam com uma máquina na mão como se fosse meio que a extensão do meu corpo e eles me viam desse jeito, sabe? Era normal o Daniel estar com a câmera.  No começo não, no começo a galera meio que tipo ‘Que esse doido tá fazendo com a máquina? ’.  Mas como sabiam que eu tava lá para viver, eu era aceito como fotógrafo, eles me viam como fotógrafo e lá foi a grande escola. Então, assim, eu precisava ter feito algo mais pelo bairro. Eu acho que se o TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] fosse um livro fotográfico, a temática meio que seria sobre o bairro da Caema.

Como começou essa proximidade com bairro da Caema, foi a partir do documentário que vocês fizeram sobre o prédio? [O documentário SOS Bairro Caema, trata sobre a mobilização em torno da construção de um centro cultural em um prédio abandonado que antes era uma estação de tratamento de água da Caema em Imperatriz-MA]

Assim que descobri a fotografia, tipo nada profissional, nada e eu comecei a ver malabares na rua, eu sempre gostei muito de arte de rua, de conviver, essas coisas…. Aí, eu sabia que lá tinha o Tico que eu já conhecia de outro movimento que era o Ocuparte, que ocuparam uma casa abandonada pra depois virar biblioteca, hoje é até a Fundação Cultural. Lá foi uma ocupação, eu tinha amigos e aí sempre falavam do Tico, até que fui bater lá na casa dele e o Tico sempre foi um cara muito receptivo, aberto e já me recebeu de um jeito ‘E aí, compadre! Senta aí! Cafezinho’. Acho que tinha hora que ele queria até me mandar embora, de tanto que eu ia para lá. Mas vou entrar aqui no contexto: minha fotografia sempre foi muito de questionar, problematizar, de querer brigar. Uma imagem para brigar. É uma coisa meio maluca assim, mas o prédio [que havia sido uma estação de tratamento de água] era algo que eu passava todo dia em frente, a gente começou a se questionar ‘E aí, por que que esse prédio abandonado tem 20 anos, uma coisa do Estado tá lá jogado e nunca fizeram merda nenhuma lá?’. Aquele prédio é uma coisa que poderia ser revitalizada, daria nem se fosse o terreno, se não dá mais para aproveitar, destrói e constrói uma escola, faz alguma coisa e esse incômodo não era só meu, só que a gente usava a fotografia para denunciar, a gente começou a fazer denúncia, começou a publicar na internet e aí depois as outras pessoas começaram a olhar o prédio. E foi juntando outras forças, forças externas se somaram as nossas e aí levantaram esse grande questionamento. Fizeram, fizeram, fizeram mesmo, mas até hoje tá lá o prédio abandonado, mas a gente lutou, tentou fazer. Por isso esse documentário acaba aparecendo, mas surge mesmo do incômodo nosso lá dentro do bairro para fora. E aí, a gente recebe apoio de fora, foi bem importante e a gente até acreditou que iria acontecer alguma coisa. Até hoje eu acredito ainda.

Como é o teu processo de fotografar?

Hoje, eu tenho 10 anos que tô fotografando, então não é que a gente não precise treinar. Precisa!  Você precisa estar sempre se atualizando, o mundo não para. Mas hoje em dia eu tiro três para acertar duas no evento, numa coisa. Antigamente, eu acho que tirava 10 para acertar uma. Quanto mais você pratica mais você apura seu olhar. Cada vez mais eu tô mais difícil para fotografar, eu preciso que as coisas me despertem. Às vezes, eu prefiro ir lá e observar. Não é uma coisa que tipo tenho tanta gana de ficar fotografando e essa busca pela imagem perfeita, eu dei uma acalmada porque as fotografias acontecem. Lógico que tem coisas que a gente na hora resolve o que vai fazer, mas eu sou bem seletivo, hoje em dia. Antigamente, a gente saia na rua ‘Ah, hoje vamos fotografar a cor vermelha’. Uma forma de treinar e sair para rua e as coisas de vermelho que ia chamando atenção a gente fazia para fazer uma postagem. Era bem aleatório mesmo, já hoje eu sou mais seletivo, algo que foi se apurando com o tempo na minha vida e eu não sei se isso é bom, se é ruim, não acho que diminui o meu gosto pela fotografia. Apenas fiquei mais seletivo para clicar e, às vezes, só um celularzinho também, a gente tira umas fotinhas que fica legalzinho, conta uma historinha. O mundo tá muito rápido, eu sou um cara lento. Eu sou muito devagar, tudo eu preciso de mais tempo para fazer. As pessoas querem ir de carro, eu quero ir a pé, porque eu posso observar melhor, apurar meu olhar para poder fazer um clique, sabe? Eu já fui para lugares e as pessoas ‘Cadê a câmera?’. ‘Ué?, não sabia que eu ia ter que tirar foto, cara’. Fui numa manifestação, uma vez, tava lá como manifestante, apoiando a causa e a pessoa me fez essa pergunta, lembrei dessa cena. Antigamente era muito normal eu ir e levar a máquina já e querer fazer e hoje em dia para levar a câmera, eu tenho que estar muito naquele dia ali, as coisas tem que estar acontecendo.

Você é bem diverso em relação aos temas das suas fotografias faz desde buraco da rua até exposição sobre violência contra a mulher. Como o seu olhar é muito diverso, existe algum tema que você sentiu mais dificuldade ou achou mais complicado de fazer?

Posso te contar uma história que tem a ver com essa pergunta? A mais difícil de todas as imagens que eu fiz foi da mãe de uma amiga, a mãe da Eurides, uma mulher lá na Caema e ela sempre tratou a gente muito bem. Ela é aquela que me mostrou também várias partes do bairro e ela gosta da gente, se eu for lá e não tomar um café, Ave Maria, ela me bate! O dia que eu for lá eu tenho que ter um tempo para sentar com ela e tomar café, sempre foi assim. E aí um dia eu tava dando aula no projeto que era o PES e na hora que eu tava saindo pra uma prova na UFMA [Universidade Federal do Maranhão]… eu saía do projeto e corria para UFMA, né? Aí quando sai na porta, eu dava aula na Uemasul [Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão], onde antigamente era UEMA [Universidade Estadual do Maranhão] e até a UFMA é uma distância de 10, 15 minutinhos caminhando… aí eu recebo uma ligação da vizinha da Eurides, porque ela não mexe com celular, era uma pessoa analfabeta, mas analfabeta só de letras, né? Porque de mundo, ela é uma gênia, uma doutora da vida. E aí eu recebo uma ligação da amiga dela, vizinha, que ela tinha pedido para ligar pra mim dizendo que a mãe dela faleceu. Aí eu tava com os equipamentos, para dar aula para os meninos, aí aquela hora assim, tipo eu dando um passo para ir para Universidade, já virei, desviei o caminho e desci para o bairro da Caema. O falecimento da mãe de uma amiga, que era a Dona Maria, enfim, eu tenho uma relação com a Dona Maria também. Inverti meu caminho e corri para lá, nem lembrei mais de prova nem nada, que essas horas você precisava socorrer alguém, eu não podia fazer nada por ela, mas pelo menos de estar ali. Cheguei lá, Eurides veio e me abraçou, beijou, conversou comigo e foi contar da mãe dela e ainda tava tão triste o bagulho que nem conseguiram ter velório porque não tinha grana para pagar. Eu ainda tentei correr atrás de amigos, de político, essa história, cara. Não teve jeito, tipo não teve velório, eles não tiveram direito de velar… Aí quando eu cheguei lá, ela perguntou assim para mim ‘Daniel, você trouxe sua câmera?’. Eu tava com ela nas costas, mas na hora deu vontade de responder não. Mas foi tão natural dizer ‘Sim, eu trouxe’. ‘Ah tá, então você vai fotografar o velório, o corpo da minha mãe’. No caso, era para ser um velório, mas acabou que não teve e ela ‘Pois tu vai fotografar a minha mãe’. Cara, na hora que ela me pediu isso, eu paralisei. E eu lembrei exatamente de como as pessoas faziam esse tipo de imagem antigamente. Muita gente tem, eu não gosto desse tipo de imagem. Mas eu vi do meu pai uma vez, eu mexendo no álbum antigo tava escondido assim, ó, foi um susto para mim. Eu nem tenho essa imagem na minha cabeça e ela me pediu para fotografar, prontamente eu disse ‘Sim, claro!’. Mas por dentro eu queria ter dito não, ‘Eu não consigo fazer isso’, porque era um momento tenso. Eu já tinha vivido o velório de entes queridos, pessoas amigas. Mas eu nunca tive dentro da minha profissão, em um momento como esse e ainda era uma pessoa que eu conhecia, era minha amiga pedindo, então era todo um embrulhado de sentimentos. Aí acabou que não teve o velório, já ia ser direto no enterro e as horas passando lá embaixo e o corpo já indo para o Bom Jesus. E aí, a vizinhança se juntando, conseguiram achar uma Kombi velha, todo mundo entrou, na hora de ligar a Kombi não pegava, aí tivemos que descer para empurrar. Eu fui o tempo todo pensando ‘Meu Deus como é que eu vou fazer isso? Como que eu vou conseguir?’. Nesse momento, eu também tava abatido sentimentalmente pela minha amiga, com a mãe dela, tudo que tava acontecendo, a tristeza, muita coisa forte assim. Quando chegou lá, ela pediu para fazer fotografias daquele momento ali. E aí depois viram que o corpo foi todo malcuidado, ela começou a abrir, tirar a roupa da mãe dela, assim, e ver os cortes. Tipo, ‘Olha aqui o que fizeram, cara. Daniel filma aqui para mim, eu quero denunciar isso aqui’. E eu ali segurando a câmera, segurando a minha emoção e em alguns momentos eu me desconectava de mim mesmo, eu incorporava só o fotógrafo, só o cara que tá ali, um jornalista. Eu não lembro de outro momento tão complicado, tão triste que me aconteceu.

E para não dizer que eu não falei de alegrias, teve um momento também… como a gente já falou de morte, tem dois momentos que são mais alegres e que não foram fáceis. Uma vez, uma amiga deu de presente o meu trabalho para uma amiga dela que ia ter um parto. Parto eu nunca tinha feito, fui fazer essas imagens e foi tenso. Cheguei cedo e na hora de subir, no último momento, o pessoal diz que precisa de uma autorização e já foi tentando vestir roupa e o pai lá fora esperando, aquela correria no hospital, mas e eu lá dentro, cara… e na hora que a criança começa a sair, eu me emocionei, emocionado mesmo que tava, mesmo sem entender direito. Você tá ali, sabe? Mas eu fiquei emocionado e ‘Por que que eu tô emocionado?’. Eu acho que tem muito a ver com relação a vida, né? Esse momento para mim foi bem difícil porque você só tem aquele momento, se eu errar isso, se a câmera dá problema, você fica pirado no meio ali e foi muito difícil.  Se você falar ‘Daniel, você quer continuar?’. Olha, por um lado até que ainda faria algumas coisas se profissionalmente falando, mas se eu pudesse escolher não fazer, eu gostaria de não fazer. É muito complicado. A outra é mais engraçadinha e foi outro parto. Um amigo chamado Marlon e a esposa dele que ia dar à luz lá no regional que é o hospital público. Ela sentiu as dores, começou o processo de parto e tinha que pedir autorização, é muito burocrático, eu entendo a burocracia, mas enfim sempre passa por isso quando vai fazer esse tipo de imagem. Essa seria a primeira vez que iria fotografar um parto, aconteceu antes do outro parto que fotografei.  Vamos lá, eu, Marlon, a esposa dele, a Andreia descemos, a irmã dela também desceu para acompanhar ela lá. Conseguimos todas as autorizações que tinha, um amigo que ajuda aqui, outro ajuda ali e enfim… Daqui a pouco a gente sai lá fora do hospital, porque não podia ficar muitas pessoas lá dentro conversando e o médico tinha dito ‘Ah, as contrações começaram agora, só vai parir de manhã’ e eram 10h da noite. Aí nós saímos lá, eu vou passar a noite aqui acompanhando, na hora que ela entrar para sala – já tinha todas as autorizações – iria entrar também, beleza? Tá? Vamos ali fora fumar um cigarro, ‘Tô com fome, bora lanchar?’ e eu ‘Bora, cara’. A gente saiu assim para uma praça, uma distânciazinha razoável, foi de carro, rapidão. Chegou, pediu um lanche, o telefone toca, avisando que o menino nasceu na sala de espera. Voltamos, eu tirei fotos só da porta do hospital e fiz uma publicação contando essas historinhas. Na fotografia, eu já fiz o nascimento e já fiz um aniversário de 100 anos, que também para mim é uma coisa marcante. Eu tive vários pequenos trabalhos que só quando soma todos acaba ficando grande, mas são pequenas historinhas assim, então sempre digo ‘Rapaz, já fiz [fotografia] de nascer [parto] a senhorinha de 100 anos e é muito massa.

Gostaria que você contasse um pouquinho a respeito do Imperatriz Fotos. Como que surgiu?

Quando eu entrei na universidade meio que eu já tinha esse objetivo. Escolhi Jornalismo, né? E eu lembro que a gente entrou da mesma turma. Lembro que a gente falava ‘Vamos fazer um site!’. Eu já botava na cabeça das pessoas: ‘Mariana [Castro],  vamos fazer um site?’. Vamos fazer um site e o primeiro esboço iria se chamar Maria da Janela. Nós estamos falando de 2012, porque a Maria da Janela, seria uma pessoa que fica na janela, meio que para ver as coisas. Então acabou que não deu certo porque é difícil as pessoas comprarem ideias novas e para a época ter um site de Jornalismo era muito inovador. Acabou que fizemos esboços, mas não aconteceu nada porque faltava conhecimento, técnica, essas coisas. Mas o sonho ali tinha plantado uma semente na minha cabeça. Então eu conheci a Rosana e ela já tinha esse olhar pela fotografia. Inclusive, eu a conheci porque eu comecei a ver fotos sendo publicadas na internet, eu fui ver quem era e eram da Rosana. E aí depois a gente se conheceu, tivemos um namoro e hoje, eu acho que a gente era mais amigos da vida mesmo. Ela me apresentou a fotografia. Começou a querer me ensinar e eu já era muito propenso a aprender, eu precisava apurar meu olhar, aprender o que era a fotografia para o meu olhar. Mas também pegamos a máquina e para aprender a gente já colocou assim ‘Ah, vamos fazer um site de fotografias!’. Tipo, foi muito rápido isso, a gente se conheceu e pouco tempo depois já tinha um projeto chamado Imperatriz Fotos. A Rosana é muito boa em tudo que ela faz, mano, ela é muito boa e aí ela já aprendeu a mexer e começou a fazer o site. E quando a gente viu, já nasceu o Imperatriz Fotos. A gente tinha uma postagem por dia, então os temas eram aleatórios, a gente via uma carcaça de um calango que as formiguinhas estão comendo, tirava foto e postava (risos). Essa do calango foi uma postagem que eu lembro que a gente fez, uma das primeiras. Eu tirei várias fotos e colocava no site, tipo a natureza como ela. A gente não tinha escrita, a gente falava através das imagens e tudo isso foi como uma escola. Como um grande exercício que todo dia a gente tinha que alimentar. Eu acredito que, pelas conversas que eu e Rosana já tivemos na vida, que para ela também foi uma escola, sabe? Foi onde ela, onde a gente se profissionalizou. A gente começou a tirar foto quando vi já tava no mercado de trabalho por causa do Imperatriz Fotos. Hoje se Imperatriz Fotos ainda existisse, se a gente ainda tivesse o domínio, cara, seria ótimo, porque não é só para o Daniel e para a Rosana, sabe? Era uma coisa pública, era uma coisa da cidade, nosso olhar também com muita coisa da cidade, muitas histórias, manifestações, e tem registros de animais, então assim se você for pegar só Imperatriz já dava para ter um pedacinho da história que é Imperatriz. Então, foi muito importante no meu crescimento, na minha vida profissional, no meu desenvolvimento para aprender a fotografar. Me arrependo muito de não ter continuado pagando o domínio, nem que fosse só para manter ele lá, mas era a vida também de estudante, sem dinheiro, essas coisas, mas foi uma coisa que para mim marcou bastante na minha carreira e para a cidade também, tinha muito acesso e era um bom site para você olhar.

E sobre as oficinas de fotografia, como que elas começaram?

Assim tem histórias e histórias, né? Eu sempre quis e eu tenho ainda o sonho de ser professor. Não por ser professor pelo dinheiro, mas assim, porque eu acredito que através da educação que a gente consegue mudar a realidade. E aí, eu comecei dentro da história do Imperatriz Fotos. A primeira turma que a gente montou tinha professor doutor, professor mestre e aí só era umas pessoas que eu olhava e pensava ‘Como é que eu vou ensinar esse povo que é tão estudado, tão letrado?’. E ali eu descobri como falar, trabalhar com gregos e troianos no mesmo campo de atuação, sabe? Aí depois, eu sempre quis fazer mais pela Caema [bairro periférico de Imperatriz]. Acabou que eu ainda tenho essa dívida assim, apesar de ter levado projetos para lá. Mas a grande oportunidade mesmo, foi através do professor Fabrício, magro velho. Eu chamo professor Fabrício magro velho (risos). Ele me convidou para fazer parte do PES, que é o nome do programa. Eu tive uma turma com 40 alunos, às vezes, variava. Às vezes, você tá dando aula lá e chegava oito alunos vindo do orfanato. ‘Hey, Daniel tem mais esses outros aqui!’. Eu comecei a ver resultados, eu tive alunos que passaram por mim e que hoje trabalham na área, sabe, cara, isso engrandece demais. Essa é uma gratidão que eu tenho com o universo por ter me usado como ferramenta também para ajudar. E aí, eu sempre tive essa de que vou ter uma escola de fotografia e no meio disso sempre me chamaram para dar oficinas e conversar sobre fotografia, mano. Sempre estou disposto, se o projeto não tem fins lucrativos e é de graça. ‘Daniel não dá para pagar’. Vamos! ‘Ah hoje tem 100 reais’. Ótimo, vai ter uma cerveja! (risos). Eu sempre gostei de repassar, porque eu também recebi gratuitamente todo meu conhecimento, minha carga de conhecimento. Eu recebi em faculdade com os professores e mestres. Eu digo que a Rosana é uma grande mestre para mim, sempre vai ser minha referência.  Acho que eu repassar isso é até uma forma de manter vivo. Até chegar numa parte em que eu quis fazer uma escola de fotografia sem estrutura. Já tava na quarta turma e vi resultados. A galera pedia mais, aí tinha gente que eu sorteava bolsa, aí tinha gente que não tinha dinheiro para pagar. Eu cobrava um valor simbólicos que era R$ 100 para 10 aulas de fotografia. Tava na quarta e ia para quinta turma, mas já pensando futuramente em ter uma escola real, comprar mais equipamentos, conseguir me estruturar para trabalhar nessa área. Infelizmente, começou a pandemia e muitos sonhos, projetos, pessoas que já nem tão mais aqui e que me apoiavam se foram. A pandemia interrompeu o sonho grande, sabe? [nesse momento o Daniel se emociona]. É porque eu lembrei de gente que já não tá mais aqui comigo. Mas enfim, teve essa paralisada que paralisou minha vida e até hoje eu ainda não me achei. E então, eu não tô triste porque eu tive um sonho interrompido, não. Esse sonho, ele tá no meu coração e eu acho que eu vou conseguir. Já bati em muitas portas, já pedi ajuda e nunca parei, não vou parar.

Para fechar a entrevista, eu gostaria de te fazer uma pergunta que você mesmo me disse que ninguém nunca te fez, que é sobre a questão da maconha na fotografia. Você me disse que ela acionou coisas em você e também apurou o teu olhar. Pode me explicar melhor?

Eu sei que é uma contravenção, então é muito difícil alguém querer perguntar e escrever sobre isso. A minha relação com a erva, que é medicinal, ela é muito forte. Já fumava antes, mas eu acho que eu fumava sem um propósito. Hoje em dia, eu tenho uma relação de lazer também, mas eu já fui em vários eventos, assim, que a fotografia fica travada. Principalmente quando são eventos repetitivos. Um exemplo, um evento de cultura do SESC, que dura 10 dias, aí nos dois primeiros dias vamos dizer que seja só oficina e, às vezes, você tá lá, é só uma sala, um movimento de algumas pessoas e é muito mais fala e tal e aí, você não sabe o que fotografar. Então, a cannabis, ela sempre expandiu na hora que eu necessitava de criatividade, de pensar, de ver mais. É como se ela ampliasse a minha visão. Às vezes, o evento tá repetitivo, repetindo. ‘Caramba, mas essa mesma foto tá acontecendo hoje de novo?’. E aí, quando você fuma e tal, você vai lá e vê que a limitação estava em mim e não no que tava acontecendo. A limitação era minha, eu precisava mudar o ângulo, eu que precisava ver outro contexto e a cannabis sempre, sempre, mano, me fortaleceu para ampliar em relação ao meu trabalho, do jeito que eu vejo as coisas.  Então, assim, ela tem uma forte ligação, uma ligação muito grande. Eu espero um dia ainda ver esse Brasil, o mundo todo, descriminalizar, tirar essa história de que essa erva é do mal e não sei o quê, isso é balela mesmo. Quando você vai ver pela ciência, a ciência fala sobre, mas as leis são retrógradas. Enfim, ela ajuda a me acalmar, ajuda a expandir. Agora sim, para dar aula, que precisa de um pouquinho mais de concentração, eu não aconselho, não, porque você fica muito disperso. Mas, no geral, quando eu vou fotografar, eu prefiro ter fumado porque a criatividade ela aumenta em mil vezes. Você vê o mundo de outra maneira e se você for olhar minhas melhores fotos, eu tenho certeza que eu tinha fumado e isso é um tabu para muita gente e a gente tá aqui para romper esse tabu.

Confira alguns registro do Daniel Sena

Idayane Ferreira

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