Luta por saúde: população trans em Imperatriz enfrenta barreiras no acesso a terapias hormonais

Sem ambulatório especializado na cidade, pessoas trans recorrem à automedicação. Devido à falta de acompanhamento médico adequado, a prática pode causar graves danos à saúde, incluindo problemas hepáticos, renais, cardiológicos e hormonais.

Desde que se reconheceu como uma pessoa trans, a estudante Amanda Cristina seguiu o caminho que muitas travestis e transexuais percorrem: buscou, por conta própria, informações sobre como iniciar a terapia hormonal. Aos 16 anos, ao conhecer pela primeira vez uma pessoa trans, sentiu que finalmente estava diante de alguém capaz de compreender o que vivia naquele momento. “Comecei minha automedicação definitivamente aos 16 anos. Aprendi a usar hormônios com base nos relatos de uma mulher trans que compartilhou sua experiência comigo. Entrei em grupos de conversa nas redes sociais, troquei experiências, pesquisei bastante e, assim, consegui descobrir quais medicamentos e em que quantidades eu poderia usar.”

O artista visual Santiago Medeiros enfrentou uma trajetória semelhante. Ao se reconhecer como um homem transgênero, buscou informações na internet para iniciar a terapia hormonal. “Há cerca de cinco anos, me descobri como uma pessoa trans. Fui pesquisando sobre o assunto e conheci a existência de homens trans com barba, hormonizados e com documentos de identidade retificados. Fiz tudo por conta própria. Sei que essa não é a melhor forma de começar, mas, infelizmente, o acompanhamento médico para pessoas trans em Imperatriz é complicado”, relata. Apesar dos riscos, ele construiu gradualmente a identidade que tanto desejava.

O que Amanda e Santiago vivenciaram reflete a realidade de muitas pessoas trans no Brasil. Ao compreenderem sua verdadeira identidade, a maioria delas recorre a outras pessoas trans para obter informações sobre medicamentos, seja por meio de fóruns, grupos em redes sociais ou pelo chamado apadrinhamento — quando uma pessoa trans mais experiente orienta outras sobre a medicação que utiliza. Embora essa troca seja motivada pela busca de apoio, como destaca a pedagoga e transfeminista Letícia Nascimento, autora do livro Transfeminismo — “Somente uma pessoa trans conseguiria se colocar na vivência de outra pessoa trans” —, essa prática coloca em risco a saúde da comunidade T.

Os riscos para a saúde são numerosos e graves. A enfermeira ginecologista e especialista em sexualidade e gênero Erika Tourinho explica as consequências da automedicação: “Automedicação é prejudicial em qualquer ser humano, independentemente do período de transição. Uma transição hormonal sem acompanhamento médico, endocrinológico e cardiológico, sem suporte de serviços multidisciplinares, torna-se extremamente prejudicial, porque esses hormônios deixam depósitos no fígado, nos rins, no coração, podendo causar problemas graves nesses órgãos. Por isso, o ideal é consultar um endocrinologista, que fará uma avaliação e decidirá quais são os hormônios mais adequados.”

Erika Tourinho, enfermeira ginecologista e especialista em sexualidade e gênero. Foto: Arquivo pessoal.

Ela ressalta que é preciso que a pessoa se consulte com o endocrinologista para que a transição seja mais saudável, pois este processo é resultado da combinação de bloqueadores e repositores hormonais: “Vamos pensar — além dos hormônios, ainda têm que vir os bloqueadores hormonais para gerar uma transição confiável. Então é muito complicado, até fazer o uso de outras medicações ou outros ativos associados a essa transição hormonal. Daí o problema, que pode ocasionar problemas hepáticos, renais, cardiológicos, circulatórios. Então é necessário que esse paciente passe a ter um acompanhamento correto de um endocrinologista, porque é este profissional que vai saber quanto tempo ele vai usar cada hormônio, quanto tempo ele vai usar cada bloqueador e como fazer o uso deles.”

Uma pesquisa de 2019 a 2021, realizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) com 1.317 mulheres trans e travestis em cinco capitais brasileiras, apontou que 72% (381/525) fazem o uso de hormônios sem prescrição médica. Esses dados revelam uma realidade que também é vista em regiões interioranas e metropolitanas.

Em Imperatriz, não há um dado específico de quantas pessoas trans fazem o uso de medicação por conta própria. Isso se dá, principalmente, pela falta de um ambulatório que, além de oferecer serviços multidisciplinares, como médico endocrinologista, psicólogo e psiquiatra, tenha uma rede que abrace essas identidades para discutir direitos à saúde básica. Segundo Santiago, a maioria, principalmente de homens trans, evita até fazer exames de rotina por conta da discriminação: “A maioria não vai a médicos ginecologistas porque muitos médicos não estão preparados para nos atender e muitos até se recusam a atender um garoto trans por puro preconceito.”

A Portaria n° 2.803, de 19 de novembro de 2013, prevê a ampliação e aprimoramento do processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS), assim como assegura, pela Portaria n° 2.836/GM/MS, de 1° de dezembro de 2011, no SUS, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Portanto, além das pessoas trans terem o direito de fazerem a terapia hormonal pelo SUS, esta comunidade também tem o direito à saúde básica, além do processo transexualizador. Na capital São Luís, há duas redes que atendem à necessidade da população trans: o Ambulatório Trans Sabrina Drummond, no Cohatrac II, e o Ambulatório de Sexualidade do Hospital Universitário da UFMA. Em Imperatriz, segunda maior cidade do Maranhão, ainda não existe nenhuma Unidade Básica de Saúde que ofereça terapia hormonal.

Ambulatório Sabrina Drummond, em São Luís (MA). Foto: Reprodução Observatório LGBTQIA+ MA

Humanização e atendimentos disponíveis para pessoas trans em Imperatriz

A técnica de enfermagem Kimberlly Rodrigues conta que, assim que teve consciência dos perigos da automedicação para a saúde dela, foi atrás de uma consulta com a ginecologista. Desde os 16 anos, ela faz uso da terapia hormonal. Ela diz que, assim como outras garotas, também aprendeu na internet como fazer o uso de medicações. Ela teve contato com Erika Tourinho, que a instruiu que mulheres trans também podem fazer consulta ginecológica, mesmo se a mulher trans não tiver feito a cirurgia de redesignação sexual.

Segundo a enfermeira Erika Tourinho, a área da ginecologia abrange tanto mulheres cisgênero quanto mulheres transgênero. Ela conta que esta especialidade é tão necessária quanto a endocrinologia, pois é feita uma análise médica em todo o corpo e não somente focada na genitália: “Quando nós fazemos uma consulta ginecológica, de enfermagem ou de medicina, tanto faz, porque a consulta é ginecológica. A gente não analisa a paciente somente pelo órgão genital. Não pedimos somente para a paciente sentar na posição para analisar a vagina e depois ela ir embora. Eu tenho que analisar as glândulas, eu tenho que analisar mama, eu tenho que analisar axila, eu tenho que analisar abdômen, eu tenho que saber o tempo de hormonioterapia dessa pessoa trans, eu tenho que saber o TGO, TGP, magnésio, cálcio. A consulta ginecológica é bem mais ampla do que as pessoas imaginam. Então, a mulher trans também é contemplada na ginecologia. Eu vou ter que analisar as mamas da mulher trans para saber o que é que desenvolveu de glândula, analisar os linfonodos que são próximos da mama, saber como está a alimentação dela.”

Ela complementa que o tempo de automedicação por hormônios pode trazer um dano e, por conta disso, é feito um rastreio para saber o que ficou no organismo da pessoa trans: “Por que eu tenho que saber isso? Porque eu preciso saber o que esse hormônio ocasionou nela. Nós temos, dentro do sistema, uma bomba de sódio e potássio. Essa bomba é regulatória, ela regula todo o nosso organismo. Então, eu tenho que entender como é que ela está reagindo. Por exemplo, a Kimberlly acabou de falar que ela começou a fazer a transição dela pela internet e parou várias vezes, várias vezes ela interrompeu. Então, tem depósitos desses hormônios no fígado e nos rins. A gente tem que saber como é que está esse sistema”, explica a enfermeira.

Erika Tourinho é especialista em ginecologia, obstetrícia e sexologia. Além disso, é pesquisadora na área de sexualidade e identidade de gênero. Atualmente, ela atende, de forma particular, pessoas trans em um consultório chamado Espaço Mãe Mulher, no edifício Zion, na Rua Hermes da Fonseca, no bairro Juçara.

A nossa produção do Portal Assobiar procurou a Assessoria de Comunicação do prefeito Rildo Amaral. Em nota, informaram que, no primeiro momento, irão recuperar a rede básica de saúde como um todo e desafogar o Hospital Municipal de Imperatriz, o Socorrão. A assessoria confirmou ainda que, a longo prazo, a gestão Rildo Amaral vai pensar em um possível ambulatório que atenda à necessidade de pessoas trans.

Pedimos nota também para a Secretaria de Estado da Saúde (SES), perguntando se o governo do estado do Maranhão tem algum projeto para a implantação de um ambulatório em Imperatriz. Segue nota da SES:

“A Secretaria de Estado da Saúde (SES) destaca que cabe aos municípios implementar, em seus territórios, serviços adequados às necessidades locais. Esta estratégia respeita a descentralização prevista no Sistema Único de Saúde (SUS) e busca potencializar a atuação de cada município, em colaboração com o Estado, para garantir o direito à saúde de todas as pessoas.

A SES reconhece a importância de ampliar o acesso à saúde integral da população trans em todo o Maranhão e, neste sentido, está comprometida em fortalecer as redes municipais de saúde por meio de capacitações técnicas e treinamentos direcionados aos profissionais, com o objetivo de apoiar os municípios na estruturação de serviços inclusivos e humanizados conforme previsto na Portaria Nº 2803, 19 de novembro de 2013, que redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS).”

Por: Rennan Oliveira

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