Quilombolas que vivem dentro das áreas de plantio de agroindústrias de palma, no nordeste paraense, reivindicam a posse das terras e denunciam diversas violações de direitos
Por Cecilia Amorim (InfoAmazonia)
Situada na zona rural do município de Acará, no nordeste paraense, a comunidade quilombola Vila Gonçalves, é uma das dezenas de localidades da região que teve o seu modo de vida alterado com a expansão da agroindústria do dendê na Amazônia. Há quase uma década, os moradores são impedidos de circular livremente no território após a comunidade ter sido cercada por estruturas de grades e segurança patrimonial da empresa Agropalma – pertencente ao Grupo Alfa, dono do banco de mesmo nome, que se instalou na região na década de 1980.
Nos últimos anos, o avanço das plantações de palma, matéria-prima para a produção do óleo de dendê, intensificou conflitos territoriais entre comunidades tradicionais e empresas que atuam com o negócio bilionário do dendê no Pará. O território conhecido como Vale do Acará, no nordeste do estado, é um dos principais focos dessa disputa territorial, que envolve o agronegócio e comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas.
De acordo com a Pesquisa Agrícola Municipal (PAM), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), quase 100% do dendê cultivado no Brasil está em território paraense. Os dados mostram que, em 2021, o Pará produziu 98,56% do dendê nacional, totalizando 2.846.023 toneladas do fruto.
O assunto é tema da 14ª edição do podcast Carta Amazônia, projeto de jornalismo independente, realizado pelo site Carta Amazônia em parceria com a Rede Cidadã InfoAmazonia. O episódio relata a violência desencadeada por disputas de terra entre as comunidades quilombolas da região do Vale do Acará, localizada na divisa dos municípios de Acará, Moju e Tailândia, no nordeste paraense, e a Agropalma, indústria de exploração de óleo de palma.
Agropalma é uma indústria que atua desde 1982 na região do Alto Acará. A empresa planta palmeira de dendê e beneficia o azeite do fruto, que também é conhecido como óleo de palma, em uma área de 22.972 hectares. Deste total, 18.203 hectares são reivindicados por quilombolas de diferentes comunidades. A competência de conceder a titulação a cada uma das comunidades é do Instituto de Terras do Pará (ITERPA).
A empresa cercou todo o território em disputa e instalou portarias com equipes de vigilantes que monitoram o acesso para a comunidade de Vila Gonçalves. Há pouco mais de oito anos, a comunidade não tinha conhecimento que o local era território quilombola e, em consequência disso, também não tinha conhecimento dos seus direitos. A reação dos moradores se fortaleceu apenas em 2015 com a criação da Associação de Quilombolas, Ribeirinhos e Agricultores Familiares do Vale do Acará (ARQVAR).
“A fundação da associação se deu já no território da batalha, nós fomos apropriados da nossa terra em 1993, de lá pra frente, deu continuidade em um conflito entre os quilombolas e a Agropalma por questão territorial. Porque, de certa forma, a empresa encontrou uma brecha não na lei, mais de forma leviana em expulsar os quilombolas da margem do rio Acará e isso foi dificultando, porque conforme ela foi expulsando as famílias, ela foi tirando o acesso nas vicinais que liga a PA-150 Rio Acará, ou seja, tirou a acessibilidade dos moradores que moravam na beira do rio até a cidade para ir em um médico, ao supermercado, enfim”, afirma José Joaquim da Silva, presidente da ARQVAR.
As 78 famílias que vivem na comunidade Vila Gonçalves moram em casas espalhadas ao longo de uma única rua de terra que não tem nome ou CEP. Há uma escola municipal que oferta educação infantil até o 4º ano do Ensino Fundamental. No local não há posto de saúde ou sinal de telefonia.
“De certa forma, todo tempo, a comunidade é vigiada pela empresa. Isso dificultou o desenvolvimento da comunidade, que é uma das mais antigas que tem aqui, em média de 164 anos. Nós estamos em pleno século 21 e você não vê desenvolvimento de absolutamente nada. Não tem uma infraestrutura escolar que ofereça os direitos de fato dos quilombolas aqui, nós não temos posto médico, nós não temos um veículo que possa levar um paciente enfermo. Nós estamos a 180 km da capital do estado do Pará e nós não temos, não conseguimos que a Celpa [concessionária de energia] venha instalar uma energia decente dentro da comunidade”, destaca Silva.
Para acessar o ramal que leva até a Vila Gonçalves é preciso passar por uma portaria instalada pela empresa Agropalma, monitorada por vigilantes armados. Um acordo firmado entre a empresa e as comunidades em uma audiência de conciliação definiu que os quilombolas só podem entrar na área mediante apresentação de documento de identificação.
A Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE) passou a acompanhar o conflito a partir de uma reclamação protocolada por moradores no plantão do feriado de Finados, em novembro de 2020. Eles denunciaram ter sido proibidos por funcionários da Agropalma de chegar ao cemitério da Vila Nossa Senhora da Batalha, onde foram enterrados entes quilombolas e ribeirinhos por várias gerações. A limpeza dos túmulos e cerimônias daquele Finados não ocorreram.
“Não existe violência maior quando alguém faz uso de uma determinada função pra prejudicar alguém. A empresa coloca um segurança pra fazer a vigilância em torno da área que supostamente ela diz que é dela. Quando ela encontra um quilombola ela toma o peixe, ela toma a malhadeira, ela toma o caniço, ela toma a espingarda, que é pra ele matar uma caça e levar pra casa dele, toma a caça e leva. Então, no meu ponto de vista não existe uma violência maior do que essa. Está assegurado na Constituição Federal o direito de ir e vir. Isso não é só da comunidade quilombola. Isso é de todo cidadão brasileiro. Ou seja, mas a partir do momento que alguém instala uma portaria e te limita de acessar aquilo que é seu de direito também é uma violência ao extremo”, denuncia o presidente da ARQVAR.
De acordo com um boletim de ocorrência registrado dia 27 de junho de 2022 (documento disponível no site da Carta Amazônia) quatro quilombolas foram abordados nas margens do rio Acará e tiveram as redes de pesca levadas pelos seguranças da Agropalma e em seguida foram escoltados até a saída da propriedade da empresa.
Casos como este fazem parte das estatísticas da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que no relatório de 2023, indicou que as comunidades quilombolas ocupam a terceira posição em número de casos em conflitos territoriais no país. Segundo levantamento do Centro de Documentação Tomás Balduino, da CPT, feito com exclusividade para a Agência Pública, divulgado em 2022, nos últimos 10 anos, quatro quilombolas foram assassinados em conflitos por terras na região de Acará e Tomé-Açu. De acordo com a CPT, nesse mesmo período, também houve quatro tentativas de assassinato e 14 ameaças de morte contra quilombolas e indígenas da região.
“Antes das empresas, nós tínhamos nosso livre acesso e liberdade que isso aí é a coisa que mais me dói e que hoje nós não temos. Nós tínhamos acesso de ir e voltar na comunidade hora que queria”, relembra o agricultor Elivaldo do Socorro Neves. Nascido e criado na Vila Gonçalves, Elivaldo lamenta a mudança ocorrida na comunidade com o avanço da indústria do dendê. “Hoje, a Agropalma coloca segurança nos rios, seguranças nas estradas pra gente não caçar, não pescar, não arrumar a malhadeira. E isso é triste. Nós temos que ter nosso livre acesso de ir e voltar a hora que quiser”.
Em 2016 a associação que representa a comunidade de Vila Gonçalves entrou com o processo requerendo a titulação das terras. No ano seguinte a Agropalma entrou com o mesmo pedido na Justiça.
Em 2018 a Justiça suspendeu a matrícula das fazendas Roda de Fogo e Castanheira no município de Acará pertencentes a empresa Agropalma. Na decisão judicial os documentos apresentados pela empresa foram considerados fraudulentos.
Impactos Ambientais
O dano ambiental é outra grande preocupação em relação ao avanço de plantações de palma sobre territórios quilombolas do Vale do Acará. Em outubro de 2019, uma reportagem publicada no site Ver-o-Fato, de Belém do Pará, noticiou o vazamento de óleo de dendê da empresa Agropalma no rio Acará e em igarapés da região. Na reportagem foram mostrados fotos e vídeos do despejo de dendê nos rios localizados no Vale do Acará. Técnicos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Acará estiveram no local e comprovaram o dano ambiental.
Em nota ao site Ver-o-Fato, a empresa reconheceu a veracidade da informação, e afirmou que o vazamento de óleo de palma foi de pequena proporção. A Agropalma disse ainda que após identificar o ocorrido, todas as medidas de contenção foram tomadas com base em procedimentos internos para mitigar possíveis impactos ambientais.
Em dezembro do ano passado, outra reportagem publicada no site Ver-o-Fato relatou que moradores do Vale do Acará denunciaram o vazamento de um produto químico nos rios da região. Segundo os quilombolas, o resíduo conhecido como tibórnia, usado no processo industrial de beneficiamento do dendê, teria sido despejado pela Agropalma.
Em nota à reportagem, a empresa informou que não teve registro de qualquer tipo de contaminação no rio que margeia sua área de atuação e ressaltou que “atua em conjunto com as autoridades para a preservação e cuidados com o meio ambiente”.
“O derramamento desse resíduo causa sérios danos ambientais sobretudo aos igarapés. E são igarapés que deságuam no rio Acará e isso produz várias consequências perversas para a pesca, para a qualidade desse pescado. Existe uma série de evidências de que o uso desses dessa tibórnia como um meio de fertilização que é usado pelas empresas ela causa todos esses problemas graves além de um odor fétido, um odor insuportável que causa dor de cabeça, ânsia de vômito e vertigem”, explica Elielson Silva, doutor em Ciências e Desenvolvimento Socioambiental, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Para ele, a atuação das empresas produtoras de dendê traz uma série de impactos negativos para as comunidades e mostra o quanto o debate sobre regularização fundiária é urgente.
“Esses episódios de violações no Vale do Acará só reforçam o quanto os direitos de comunidades remanescentes de quilombos ainda são desrespeitados no Brasil. É uma estrutura do colonialismo e do escravismo que nós lamentavelmente até hoje não demos conta de superar por conta de todas as relações de força que ainda existem na sociedade brasileira e que impedem que haja justamente essa democratização do acesso à terra”. Por isso, é urgente e estratégico pautar a necessidade de assegurar a regularização coletiva e o reconhecimento dos direitos territoriais e étnicos dessas comunidades”, afirma o pesquisador.
Em nota enviada ao Carta Amazônia, a Agropalma informou que todas as suas terras foram compradas dos seus legítimos proprietários e que apenas décadas depois foram constatadas falhas cartoriais que comprometeram a legitimidade da documentação de alguns imóveis e que logo que tomou conhecimento do problema acionou os órgãos competentes e pediu o cancelamento das matrículas. A empresa diz ainda que iniciou o processo de regularização fundiária, perante o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e que o cancelamento dessas matrículas não impede o amplo exercício da posse pela Agropalma.
Você pode ouvir esse conteúdo nos podcasts Rede Cidadã InfoAmazonia e Carta Amazonia.
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Este conteúdo foi produzido como parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos produzidos por mídias amazônicas.