Estive pensando sobre o devoramento das coisas, isto é, como estamos permanentemente conectados a um outro mundo – este, que não é palpável, mas demanda muitas horas de nossas vidas e pereniza nossas relações interpessoais. Ok, essa é uma sentença longa e suficientemente complexa para traçarmos vários fios com base num grande arcabouço teórico, mas hoje vou me concentrar numa coisa só: o consumo digital é canibalizante.
Explico. Vamos pelo começo, de onde partiu essa ideia.
Estou no último ano do curso de Jornalismo, o que por si só me insere com ainda mais profundidade no mundo digital, não somente como lazer, mas também numa perspectiva laboral. A maior parte dos meus colegas trabalha “produzindo conteúdo digital” – social medias, assessores, “storymakers” e por aí vai –, e eu não passo longe disso também, é claro. Já tem alguns anos que eu entendi que é muito difícil traçar qualquer outro caminho, afinal, o Jornalismo tem dificuldade até de se situar nas redes sociais — quem dirá que vai ter facilidade fora dela? As pessoas não abrem matérias para ler, ao invés disso lêem títulos e (talvez) o lead, e nosso consumo mesmo fora da internet, como o hábito de assistir noticiário ou ouvi-lo na rádio, isso já é mais raro e fica ali para a geração anterior.
Já tem um tempo que eu escuto colegas e professores falando sobre o tal “consumo de conteúdo”. É um “consumir” pra cá e pra lá. Não se assiste os vídeos de tal influencer, se consome. O mesmo se faz com todo o resto, em suma: se consome. É a comilança. E de onde vem essa fome? Mas, mais do que isso, pra onde vai isso tudo?
Como uma boa curiosa e entusiasta de Freud, eu posso apresentar algumas teorias. Claro, de forma empírica e nada comprometida com o — repito — grande arcabouço teórico que seria um — perdoe o trocadilho — prato cheio pra essa conversa; e pra começar ela, te dou o conceito da palavra que nos guiará aqui.
A palavra “consumo” tem sua origem no Latim “consumere”, que significa destruir, gastar, esgotar. É formada por o prefixo “com”, que possui um significado “intensificativo”, e de um radical “suemere”, que pode ser entendido como apoderar-se, tomar, agarrar.
O consumo digital, então, carrega em sua essência essa carga destrutiva, esse devoramento incessante. Não é à toa que a linguagem cotidiana já absorveu essa lógica canibalística – não se vê um filme, se consome; não se lê uma notícia, se consome; não se acompanha uma pessoa, se consome. A fome é insaciável e o ritmo, voraz. Mas, como na bulimia, tudo isso é devorado e logo expelido.
Freud (1921) já falava da identificação primária canibalesca, um estágio inicial do desenvolvimento psíquico no qual o sujeito deseja incorporar o outro para evitar a separação. No universo digital, essa lógica se manifesta no consumo rápido e descontrolado de informações, imagens e experiências que são tragadas sem serem realmente processadas. A dinâmica que Postigo (2012) descreve nas relações amorosas – o devorar para possuir, seguido da rejeição do objeto – também se aplica ao digital: os vídeos são assistidos em velocidade acelerada, as postagens são roladas sem leitura atenta, os debates esquentam e esfriam em questão de horas. O digital exige que devoremos e logo descartemos para dar lugar ao próximo prato.
Essa fome não é metafórica, mas estrutural. Laplanche e Pontalis (1986) falam da incorporação oral como um desejo de apropriação das qualidades do outro, e no digital isso acontece o tempo todo: queremos falar como os influenciadores, usar os produtos que eles usam, pensar como os pensadores da moda. O consumo não é passivo, mas uma tentativa de absorção, uma busca por ser atravessado pelo que se devora. A cada nova tendência, um novo banquete.
Mas há um problema nisso tudo: essa incorporação não é digestiva, e sim compulsiva. Green (1990) descreve a “dupla angústia contraditória” na bulimia: de um lado, o medo do abandono e da separação; de outro, o pavor da invasão. O consumo digital espelha essa dinâmica. Tememos perder alguma informação crucial (FOMO – Fear of Missing Out), então nos afundamos em conteúdos infinitos. Mas, ao mesmo tempo, sentimos repulsa pelo excesso e pela falta de espaço para reflexão. O resultado? Expelimos tudo tão rápido quanto ingerimos.
E essa fome nunca se sacia porque, como diz Jeammet (1999), a “apetência objetal” da bulimia se baseia em uma busca perpétua pelo objeto ideal – que, no digital, se traduz no scroll infinito. Não importa quantos vídeos assistimos, quantos tweets lemos, quantos posts salvamos para “ver depois” (e nunca voltamos): sempre há algo mais. E porque há sempre algo mais, nunca há o suficiente.
Freud (1913), em Totem e Tabu, descreve o canibalismo social como a origem de um ritual primitivo, uma orgia alimentar na qual o excesso leva à culpa e à necessidade de expiação. No digital, a lógica se repete: um frisson em torno de um assunto, uma avalanche de interações, um esgotamento coletivo, o esquecimento. Um novo ciclo começa logo depois.
A cultura digital, assim, se revela um banquete antropofágico, no qual o sujeito devora o que pode, absorve o que deseja e vomita o excesso. O que não se mastiga, se engole inteiro. O que não se digere, se expele com desprezo. E a fome nunca passa.
Fontes:
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIII. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GREEN, André. Conferências brasileiras de André Green – Metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
JEAMMET, Philippe. Desregulação narcísica e objetais na bulimia. In: BRUSSET, B.; COUVREUR, A.; FINE, A. A bulimia. São Paulo: Escuta, 1999.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. Lisboa: Martins Fontes, 1986.
POSTIGO, Vanuza Monteiro Campos. “O seu amor é canibal”: sobre o devoramento e expulsão do outro na dinâmica da relação amorosa. In: V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. Setembro de 2012.