Li estes dias um livro que me fez pensar no que nos faz humano. Itamar Vieira Junior, o autor de Torto Arado, indicou o primeiro livro de Terry McMillian e este livro me arrebatou de várias maneiras. Um livro que nos conta a história de uma mulher e seus filhos.
“Mama” é um livro precioso e preciso. Ele nos faz adentrar nos meandros da natureza humana, pois nos conta a história de qualquer um de nós, com nossa capacidade de errar e de sermos contraditórios.
Mama nos conta 30 anos da história de Mildred Peacock, uma mulher negra que mora numa cidade próxima ao Canadá. Mildred é uma mulher que, na década de 60, decide se separar de um marido abusivo e violento e se vê às voltas com subempregos e cinco filhos para sustentar. Terry se debruçou profundamente nas características psicológicas de suas personagens e no decorrer da leitura, percebemos o quanto Milderd, a protagonista da primeira parte do livro, e Freda, sua filha mais velha e protagonista da segunda parte, são mulheres com vícios, fragilidades, virtudes, intensidade e sensíveis.
Quando comecei a ler Mama, eu achei que se tratasse de um livro sobre uma mãe negra, sobrecarregada e lutando para colocar comida na boca dos filhos, porém o livro é muito mais que isso: “aos 27 anos, Mildred estava cansada como um burro de carga velho e sentia como se estivesse atravessado uma guerra”. É um livro que nos permite refletir sobre a vida de uma mulher, mãe, negra, que ama, goza, acerta, erra, cai, levanta e tem como fio condutor o amor entre mãe e filha.
As primeiras páginas do livro são extremamente brutais, pois fala da relação conturbada e violenta entre Mildred e o pai de seus filhos. Mostra a vulnerabilidade social e econômica dos moradores da cidade que viviam de empregos precários e do auxílio do governo e praticamente desenha a vida dos homens negros: a maioria não conseguiam encontrar emprego, então ficavam vagando pela cidade e todo este tédio, decepção e raiva eram descarregados em suas mulheres e filhos. Não era diferente na casa de Mildred: seu marido descontava sua frustração em bebida, amante e em uma violenta relação de amor e ódio com ela e os filhos.
O livro traça as relações entre Mildred e seus filhos, mas escolhi focar na relação entre Mildred e Freda. Elas eram muito parecidas em seus vícios e virtudes e me lembrou o texto de bell hooks “vivendo de amor”, pois apesar de Mildred ter um amor imenso pelos filhos, ela os tratava com muito cuidado, sempre preocupada em não deixar faltar nada em casa, mas não demonstrava afeto. Ela expressava seu amor com ações, numa continuidade de filiação aprendida com seus antepassados, onde o mais importante era sobreviver e deixar a marca da sobrevivência em seus filhos. Sobrevivência da espécie e de seu povo diante do fantasma da escravidão e do racismo.
Bell hooks com uma precisão cirúrgica fala que “uma sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o coração”, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afroamericanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor”. Acho que esta citação resume a vida de Mildred e de Freda.
Freda, mesmo muito parecida com a mãe em suas virtudes e vícios, desde muito nova estava decidida a sair da cidade em que nasceu e queria ganhar o mundo. Estudou e de fato ganhou um mundo onde tinha que provar ser capaz de sobreviver a ele e afundou em seus fantasmas mais de uma vez. Porém se reinventou. Mildred não teve a mesma sorte: sempre às voltas com problemas financeiros, homens e bebida, traçava a sua vida sem medir as consequências de seus atos. Mildred, a mais humana das mulheres, forte e fraca na mesma medida.
O livro bordeja muitas questões e a maioria delas ficam abertas, assim como todas as mil soluções que Mildred e a própria Freda fazem para lidar com a própria existência, mas o livro se aprofunda tanto na relação de amor e de ódio entre mãe e filha e em trazer os erros e as tentativas de acertar, que faz deste livro muito humano. Quem de nós não ama na mesma intensidade que odeia? Quem não erra na tentativa de acertar?
Mesmo com tantos encontros e desencontros, as duas fizeram um arranjo muito precioso para demonstrar amor: Mildred se deixava cuidar por Freda e Freda aproveitava cada minutinho para tocar e cuidar de sua mãe numa demonstração de amor entre mãe e filha que eu não vi em nenhuma história que eu tenha lido. Livro precioso!
Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.