O culto da Jurema Sagrada: Tradição afro-indígena que resiste em Imperatriz

Conheça o rito espiritual que mistura fé, cura e cultura no único terreiro aberto ao público na cidade.

Em Imperatriz, não é difícil encontrar igrejas de denominações cristãs, cultos e rituais para cura e libertação. Essas cerimônias se distinguem e se complementam; para elas, é reservado um dia da semana para que os fiéis vão à igreja com o propósito de buscar cura física, mental e espiritual. O Dicio, a maior plataforma online de dicionário da língua portuguesa, indica vários sinônimos para a palavra “cura”; entre eles estão pároco, pastor, sacerdote e abade. Estas são importantes figuras nesse processo, pois fazem o intermédio entre o divino e o mundano.

Em uma cidade predominantemente cristã e pentecostal, algumas outras tradições ficam de lado e são demonizadas. O segmento espiritualista, por exemplo, ainda é invisibilizado. Embora a doutrina kardecista seja relativamente difundida, as tradições espirituais oriundas do catolicismo popular, dos ritos afro-brasileiros e ameríndios não recebem o devido destaque quando se fala em processos de cura espiritual.

De acordo com a Associação de Terreiros de Cultura e Religião de Matriz Africana da Região Tocantina do Maranhão (ASTERCMA), em um levantamento realizado em 2022, Imperatriz conta com 22 templos religiosos de cultos de matriz afro-brasileira, também conhecidos como terreiros. Essa denominação é importante para compreender o sincretismo presente na Umbanda e no Candomblé na cidade. A associação explica que diversos fatores são considerados: “Nosso levantamento é baseado em locais que praticam as religiões de matrizes africanas, umbanda, candomblé, quimbanda e jurema, independentemente de ser recinto, terreiro, mesa, tenda ou congá”. Essa mistura dá origem a uma nova designação conhecida como terecô, uma religião multifacetada, por vezes chamada de tambor da mata. Essa denominação provavelmente surgiu nas cidades de Codó e Bacabal, no Maranhão, e em Teresina, no Piauí, espalhando-se por todo o Maranhão.

Desse sincretismo surge o culto da Jurema Sagrada, também conhecido como Catimbó. Assim como a Umbanda surgiu no Sudeste brasileiro no início do século XX, o culto da Jurema, centrado numa planta da família das acácias, teve origem no Nordeste e pode ser muito mais antigo que a própria Umbanda, pois é baseado em benzimentos e rezas.

Celson da Silva, adepto e precursor do culto da Jurema Sagrada em Imperatriz, define a prática da seguinte forma: “A Jurema Sagrada é um culto religioso e espiritual. É afro-ameríndio por estar centrado nas tradições indígenas e afro-brasileiras. É mais típico na região Nordeste, principalmente na Paraíba, Pernambuco e Ceará. Ela está enraizada na veneração a uma árvore sagrada chamada Jurema. No culto, as cascas e outros elementos da planta são utilizados na produção de um chá, bebida, licor ou vinho. Sua feitura passa por um processo e é utilizada em rituais para cura e conexão espiritual”.

Celson é adepto do Terreiro de Sant’Ana da Mãe Juliette, o único lugar aberto ao público para as sessões de Jurema em Imperatriz. Ele conta que, além do motivo religioso, a cidade precisava ter em sua agenda esse tipo de rito para fortalecer a cultura local: “Trazer isso para a cidade de Imperatriz não foi apenas por um intuito espiritual, mas também para fortalecer a cultura da cidade. Eu poderia fazer esse trabalho somente na minha mesa espiritual, instruído pelo meu mestre, mas decidi abrir para o público. Não foi algo apenas do chamado, mas da minha maneira de trabalhar. Eu gosto de atender as pessoas”.

Há 10 anos, Celson trabalha com o culto da Jurema em Imperatriz, e, há pelo menos 7 anos, o culto é realizado no Terreiro de Sant’Ana. Segundo ele, a Jurema é um processo longo de aprendizagem. Celson “recebeu” o “ofício” com o seu primeiro mestre, Pai Amaro de Xangô, mas foi com Pai Anthony de Oxóssi que se desenvolveu espiritualmente: “Meu primeiro contato com a Jurema foi com o meu mestre, Pai Amaro de Xangô. Em seguida, passei a aprender com Pai Anthony de Oxóssi, com quem aprendi a fazer o chá da Jurema”.

Em julho de 2024, Celson conseguiu o sacramento para realizar o rito de forma oficial. O rito agora faz parte da história da Umbanda e do terecô em Imperatriz: “Depois de muito tempo de estudo, busca, conhecimento e preparação, Pai Anthony de Oxóssi nos ofereceu, no dia 23/07/2024, o sacramento do batismo ao culto da Jurema Sagrada. Esse foi o nosso primeiro sacramento. Porque um sacramento você não recebe no primeiro ano; é preciso praticar, estudar, aprender e desenvolver-se para adquirir aptidão”.

Todas as sextas-feiras, às 20h, Celson abre o Terreiro de Sant’Ana, iniciando com uma defumação no local. Em seguida, ele reúne os médiuns da casa para intermediar a comunicação entre as entidades e os consulentes. O ritual, que faz parte da evolução espiritual dos médiuns, segue os moldes tradicionais da Umbanda. Durante a cerimônia, são traçados pontos riscados para as entidades caboclas, espíritos que representam a ancestralidade indígena e os povos originários. Quando o terreiro está cheio, Celson dá início ao ritual: os médiuns se posicionam de um lado e os consulentes, do outro. Para sintonizar as energias e invocar as entidades, entoam-se pontos cantados, músicas que contam a história da Jurema, acompanhadas por instrumentos xamânicos, como tambores e chocalhos.

As músicas contam a história da planta e da sacralidade do rito. Fagner Sá, médium da casa que trabalha no local há quatro anos, acredita que o culto da Jurema é mais antigo que a Umbanda e está intimamente ligado a Jesus Cristo: “A Jurema tem espinhos, e os juremeiros acreditam que Jesus se furou no espinho da Jurema. Então, por ele ter se furado no espinho da Jurema, ela se tornou uma árvore sagrada para nós, porque representa essa ligação que existiu entre o criador e a criação, que se tornou naquele momento através da Jurema sagrada.”

Um dos pontos principais da Jurema é cantado durante o culto, conhecido como “pau da ciência”. Fagner explica que os pontos podem se misturar e contar a história das orações de Jesus Cristo. Um exemplo é este ponto: “Jurema é um pau encantado, é o pau da ciência, que todos querem saber. Mas, se você quer Jurema, eu dou Jurema a você. A Jurema é um pau sagrado onde Jesus chorou.” Fagner diz que este ponto, além de fazer o médium entrar na vibração da roda, serve para educar os consulentes: “Ela vem trazendo uma tradição judaico-cristã, e a Bíblia diz que Jesus orava perto das acácias. Ele orava, só que a Bíblia dizia que ele orava com choros, prantos e clamores. Jesus não orava de forma silenciosa, de acordo com a Bíblia. A Bíblia diz que ele orava com clamores e prantos, então, esse ponto em específico traz essa ramificação de que é uma árvore abençoada por Jesus Cristo.”

Após os pontos cantados, os médiuns começam a incorporar as entidades, num processo que pode ser entendido como uma substituição: o corpo do médium permanece presente, mas é a entidade que assume o controle e realiza as orações ou trabalhos espirituais para os consulentes. Nesse momento, folhas e ervas são utilizadas no ritual. Celson explica que as entidades se identificam por meio de seus cantos: “Quando o espírito incorpora, ele se apresenta através de seu canto. Esse canto é sua identificação. Ele também se manifesta por meio do ponto riscado, o símbolo desenhado no chão. Qual é o sentido disso? Às vezes, alguém chega precisando de cura, e eu necessito da Cabocla da entidade Jurema. Estamos falando aqui de espíritos, não da planta. Nem sempre eles estão disponíveis, pois podem estar atendendo a outra necessidade maior. Ainda assim, consigo me conectar energeticamente com a entidade por meio do canto, que é uma vibração capaz de gerar energia e direcionar o propósito até o espírito. O mesmo acontece com o ponto riscado; quando eu o traço, estou representando o espírito.”

Lucas Ximendes, servidor público, participa das sessões de Jurema Sagrada. Ele conheceu o culto através de um trabalho conjunto em uma fraternidade da qual faz parte. Ele conta que a primeira experiência na casa foi algo muito agradável pela recepção e acolhimento: “É uma experiência incrível. A forma como respeitam e acolhem os participantes do culto é agradável. As entidades podem dar orientações, benzer e até orar pelo visitante. Então, é uma experiência espiritual renovadora. Depois do culto, passei a refletir com mais atenção sobre minha vida pessoal e espiritual e nos rumos que minhas ações podem me levar.”

O local que abriga o terreiro fica na Avenida Jacob, localizado no bairro Vila Redenção. A principal via de acesso é pela entrada do posto de gasolina que fica na Avenida Pedro Neiva de Santana, no sentido de quem vai para a cidade de João Lisboa e precisa fazer o retorno para Imperatriz. Também é possível acessar pela BR-010, pelo Jardim Tropical, ao lado da Solar Coca-Cola. Chegando ao local, ao lado direito, esquina com a Rua das Missões, percebe-se uma casa com um muro de número 10, pintada com tinta amarela, ao lado do portão de ferro. O terreiro tem uma conta no Instagram (@terreirodesantana), por meio da qual confirmam as sessões e os horários em que ocorrem os cultos de Jurema.

Por: Rennan Oliveira 

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