Livro-reportagem ilustrado retrata as lendas do Rio Preguiça e o impacto do turismo nos últimos 20 anos
Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o conceito de ‘lenda’ é definido como uma narrativa ou tradição escrita ou oral de coisas ou fatos fantásticos. As lendas fazem parte de praticamente toda cultura em qualquer tempo e espaço da história, são elas que preservam e mantêm viva a memória coletiva. Para alguns são apenas “histórias de pescador”, como se nada do que foi contado fosse verdade. Para quem já passou por situações que tiveram contato com esses seres fantásticos, eles são tão reais quanto as águas e os peixes.
Com a internet e os livros didáticos distribuídos em escolas, muitas dessas lendas passaram a fazer parte do que se chama de “folclore brasileiro”. Para quem pertence a alguma religião afro-brasileira ou espiritualista, o termo folclore pode soar pejorativo, pois as lendas são contadas como algo distante e infundadas. Para quem vive à beira de rios, igarapés e zonas rurais, essas lendas são tão válidas como a crença em um Deus único e vivo.
A jornalista e escritora Catharina Vale é uma dessas pessoas, que desde a infância sentava ao lado de familiares para observar o sincretismo de cultos católicos e de encantados vindos das lendas. A Mãe D’água era tão importante como qualquer outro santo ou entidade das religiões Católica e de Matrizes Africana.
Escutava como os encantados visitavam a casa dela pelos sonhos, lendas e histórias ligadas à água, assim como contava o avô que era pescador em Barreirinhas, sua cidade natal, lugar que está localizado os Lençois Maranhenses (famoso ponto turístico do MA). Passou a infância tomando banho em rios com amigos e primos, aprendeu desde cedo a nadar. Aprendeu também que se deve pedir permissão à Mãe D’água toda vez que entra em algum rio.
Com o passar do tempo, ao se mudar para Imperatriz, a 767 km de Barreirinhas, ainda na infância, Catharina começou a perder o contato diário com o rio, e foi se habituando a uma rotina diferente. A água agora não estava tão próxima. Em Imperatriz só tomava banho de rio quando era época de veraneio, só podia ir a casa dos avós em período de férias para se conectar com seu lado ribeirinho. Com 18 anos, ‘caiu de paraquedas’ no curso de Comunicação Social – Jornalismo, só sabia que gostava de literatura e de escrever.
Nos últimos períodos do curso, Catharina Vale entrou em um dilema muito comum para vários estudantes de Jornalismo: “Faço meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] em forma de monografia ou projeto experimental?”. A jornalista e escritora pensou que apesar da importância de uma monografia para divulgação científica, queria trazer algo que a comunidade pudesse ter acesso fácil. Daí surgiu a ideia de fazer um livro-reportagem ilustrado, para ser distribuído de forma gratuita.
Depois de uma conversa com a sua mãe, Dona Carmem, historiadora e professora universitária, em um dia comum, relembrando a infância ribeirinha em Atins e arredores pelos álbuns de fotos da família, surgiu uma ideia: “Vou fazer meu TCC sobre Barreirinhas”. A mãe complementa: “Você pode fazer sobre as lendas do Rio Preguiça e histórias dos pescadores, tem algumas pesquisas sobre a história oral do lugar”. A partir deste momento Catharina iniciou sua pesquisa procurando em teses e dissertações que tratavam sobre o imaginário, lendas e histórias do lugar que ela cresceu.
O livro foi surgindo aos poucos, fui até Barreirinhas e a Vila de Atins para entrevistar os moradores, guias turísticos e trabalhadores. Entre uma conversa e outra, ela percebeu que o livro era mais que necessário, pois as lendas estavam desaparecendo. O turismo dessa região, está em fase de crescimento desde 2003 e os moradores evadindo para outras cidades. Com o livro, isso seria uma forma de fortalecer a cultura oral daquele lugar.
O livro é dividido em 4 capítulos e tem 62 páginas. O primeiro capítulo ela apresenta o livro e a pesquisa, o segundo trata sobre as memórias e o rio Preguiça, o terceiro ela conta sobre seis lendas principais de Barreirinhas e o último capítulo ela mostra a história dos encantados, as belezas da Vila de Atins e os impactos do turismo e exploração.
Nesta entrevista cedida ao Portal Assobiar ela explora todo o tema tratado no livro. Confira o bate-papo:
Portal Assobiar (P.A): O livro ‘Lendas que atravessam o Rio Preguiça’ surgiu do seu TCC, mas por que o Rio Preguiça?
Catharina Vale (C.V): Minha família toda é de Barreirinhas e eu nasci e fui criada na beira do rio. Lá em casa, a gente veio de uma família de pescadores. Então eu aprendi a nadar muito cedo. Nossa casa é bem na beira do Rio. Eu cresci ouvindo essas lendas, a pedir licença quando é para entrar no Rio, a respeitar a Mãe D’água, respeitar os encantados, minha família sempre recebe ‘visitas’, né. A gente chama de receber ‘visitas’ quando um encantado vai à sua casa, pelo seu sonho. Uma ‘visita’, é uma definição espiritual, de viagem astral, você tá dormindo, na sua cama e esse ser entra em contato com você. Algo muito regional, cresci ouvindo essas histórias.
P.A: Pode explicar melhor sobre a “visita”?
C.V: É um tipo diferente de sonho ou uma viagem astral. Às vezes a gente sonha com fantasmas, com pessoas e com encantados em locais, mas visita é quando você tá no seu plano espiritual e esse ser encantado te ‘visita’ para te dar algum aviso ou conselho. Minha mãe me ensinou a identificar uma ‘visita’ dessa forma: a gente se vê de cima, vê a nossa casa, vê o lugar que a gente tá dormindo e vê esse encantado entrando pela porta da frente de casa. Você pode receber ‘visita’ de encantados e pode receber ‘visita’ de entes queridos que já morreram. Na minha família é muito normal a gente receber ‘visita’ de familiares.
P.A: No início do livro tem um mapa com ilustrações dos mitos e encantados, mas não cita os nomes, alguns dá para identificar de qual lenda se trata. Isso é uma forma não verbal de dizer que cada local de Barreirinhas tem uma lenda específica?
C.V: Isso mesmo! Por exemplo, a lenda das Correntes no Fundo D’água vem de uma fazenda que escravizava pessoas negras, que era uma fazenda de açúcar que acabou se tornando um local onde muitos negros foram mortos, então por isso que lá eu coloquei, exatamente no povoado que ficava o Engenho do Santo Antônio, porque essa lenda é de lá, você só ouve o barulho das correntes no rio, nessa parte de Barreirinhas, não em Barreirinhas toda, porque lá teve uma grande massacre de pessoas negras.
P.A: Falando ainda sobre as ilustrações das lendas, me conta como foi construída as artes para que ficasse o mais próximo da realidade dos ribeirinhos e pescadores?
C.V: Eu encontrei um ilustrador maravilhoso chamado Paulo. Antes eu fui atrás de vários ilustradores, mas eu queria uma coisa bem nordestina mesmo, eu queria uma coisa bem cordel. Quando eu vi o trabalho do Paulo eu achei que combinaria muito e nisso eu mandei as lendas escritas para ele e deixei ele livre para desenhar do jeito que ele queria. Confio muito no trabalho dele.
P.A: Os pescadores estão intimamente ligados ao livro, pois são relatos deles que enriquecem as lendas. O livro é também uma forma de deixar vivo a arte e as técnicas da cultura de pescaria?
C.V: Nossa! sim! Para mim é muito importante, pois meu avô foi pescador e a maioria dos ribeirinhos são pescadores e é uma profissão que está se perdendo lá em Barreirinhas. Agora existem poucos pescadores porque lá não se vive mais da pesca, se vive agora do turismo. Pesca para eles era uma arte, pois eles teciam as próprias redes para pescar, fazer os próprios barquinhos de madeira e era uma coisa que era passada de geração para geração só que com o tempo, com as famílias indo pra cidade deixando à beira do rio, foi uma coisa que foi se perdendo. Em Atins mesmo, que vivia de pesca, hoje em dia não se pode mais pescar lá. Então eu quis reviver essa memória desses momentos para não deixar se perder com o tempo.
P.A: É perceptível nos relatos dos moradores e trabalhadores do local um incômodo com o crescimento do turismo e alguns afirmam que o kitesurf expulsou os peixes e as lendas sumiram totalmente. Como você enxerga o desaparecimento dessas lendas que para estes moradores era tão real?
C.V: Isto é um grande exemplo de quando o turismo não é feito para comunidade. Você vê que em Atins o turismo não é feito para a comunidade. A vila de Atins se tornou um local onde as pessoas não podem mais morar porque elas não têm dinheiro para viver lá. A comida aumentou, o terreno aumentou de preço e virou uma disparidade social mesmo. As únicas pessoas que conseguem viver lá são argentinos, portugueses, ludovicenses e paulistas que são pessoas que tornaram esse local inacessível para moradores ribeirinhos. Não tem como você ter uma vida lá. O peito de frango é 40 reais, um galão de água é 10 reais. Então, os moradores originários tiveram que sair de lá, realmente não se pesca mais lá porque o kitesurf se tornou uma prática que espanta os peixes e é feito em toda orla. Eles tiveram que encontrar outro local para pescar que é mais pro canto, a gente chama de o ‘canto de Atins’ e tiveram que mudar de casa, pois eles acabaram vendendo terreno para especulação imobiliária por valores baixos. Venderam terrenos na beira da praia e compraram terrenos no Santo Inácio que é mais pro canto. Então toda essa população mudou para um local que fosse mais barato de viver, porque Atins se tornou um local inabitável para eles e é uma tristeza porque junto com isso vai à cultura. Lá se tornou um local sem cultura. Não digo uma cultura erudita, mas uma nova cultura se construiu visando somente o lucro, ou seja uma cultura que não envolve os ribeirinhos.
P.A: Você começa no livro falando que as lendas são parecidas em todo o Brasil e podem ser encontradas na internet, outras não tem registro. O que faz a sua obra se diferenciar?
C.V: Eu acho que isso de trazer os relatos dos ribeirinhos… a gente tem muitas obras sobre os ribeirinhos, mas são obras que não tem exatidão. A gente não sabe de onde vem, como veio. Eu acho que o que diferencia é que traz muito essa vivência das pessoas desse povoado. Então como era um povoado que não tinha luz, não tinha água encanada, muitas dessas lendas foram criadas no caminho de Barreirinhas para Atins, no caminho de Barreirinhas para Vassouras. O que diferencia é que essas lendas realmente são dessas pessoas que viveram e são contadas por elas.
P.A: Você também defende, a partir de uma tese, que as lendas servem para os pescadores se precaverem dos perigos dos rios e do mar, uma forma de se educar sobre coisas que antes não tinham explicação científica e acabam se tornando história de Encantados. Essas pessoas também acabam cultuando de uma forma religiosa esses seres?
C.V: Sim. Eles veem a Mãe D’água como um ser de proteção. Diferente do cristianismo, eles veem a Mãe D’água com uma dualidade. Um ser que te traz coisas boas, se você fizer o bem, mas que também te trará coisas ruins caso você fizer coisas ruins. Se você não trata bem uma pessoa, se você não cuida do rio, se você é ganancioso demais, a Mãe D’água também pode te tratar mal. Se você entrar sem pedir licença na água, se você pesca em um local sagrado para um encantado, a Mãe D’água vai te castigar. Então eles têm esse pensamento: ‘Ela é boa para quem é bom, mas ela é má para quem é mau’. Há também um sincretismo muito forte, eles cultuam junto com o catolicismo, o que podemos chamar de terecô ou tambor da mata. Tem uma crença muito forte na Umbanda: Eles têm por exemplo a figura da Maria como Mãe de Jesus e atrás tem a figura da Mãe D’água que também pode ser Iemanjá em terreiros e em casas.
P.A: Você já teve alguma experiência religiosa com a Mãe D’água, você já viu ela? assim como os ribeirinhos e pescadores?
C.V: Eu nunca vi, mas a minha mãe e minhas tias já receberam ‘visitas’ desses encantados e elas dizem que assim como a Iemanjá eles não conseguem ver o rosto. Ela entra no sonho, mas o rosto é um clarão. Então ela entra dentro da casa, ela conversa, recebem visita, eles recebem aviso. Quando alguém da família está debilitado, a gente recebe avisos de mortes. Toda pessoa que recebe essas visitas, não conseguem ver o rosto e não conseguem identificar. A Mãe D’Água pode vir de várias formas, acreditam que ela pode ser negra, pode ser branca, pode ser loira, pode ser morena. É uma entidade que se encaixa no que a pessoa acredita.
P.A: O livro explica isso mesmo, a maioria dos encantados ou lendas não têm rosto. Como você enxerga essa característica?
C.V: Eu não sei explicar, mas eu acho que o rosto humaniza a pessoa. E para os ribeirinhos esses encantados, principalmente a Mãe D’água, não é humano. Eles acreditam que não só a Mãe D’água, mas o Cabau D’água também fazem você esquecer do rosto dele mesmo que alguém veja uma caraterística humana, para esse povo é uma coisa de elevação espiritual, não humana.
P.A: Você acredita que essas lendas acabam servindo como acalento para os moradores por mortes que não tiveram explicação? no livro conta a morte de um menino que provavelmente foi levado pela Mãe D’água.
C.V: Eu acredito muito nisso, principalmente porque a morte desse menino aconteceu há 30 anos atrás, a Polícia não conseguia resolver casos desse tipo, na verdade, em Barreirinhas, não tinha nem Polícia. Quem resolviam esses casos eram os próprios moradores. Então eles viam nas lendas um jeito de resolver um problema que não tinha resolução. Nunca foi encontrado o corpo desse menino e a gente acha difícil de ser encontrado hoje em dia. É uma forma de acalento mesmo para o coração de uma mãe que perdeu seu filho por conta de algum perigo da natureza. Por exemplo, a lenda do Cabau D’água eles realmente acreditam que se trata de um ser irracional, e quando ele não vai com a ‘sua cara’, é melhor sair de perto. Então é muito de você fugir de problemas. Você não deve ir atrás desses seres. Você deve deixar eles seguirem em paz na casa deles. Eles acreditam que a força da natureza é assim, então você tem que deixar a natureza do jeito que ela é.
P.A: Na entrevista com os moradores você teve um contato com pessoas mais novas que nasceram lá, você percebe que os mais jovens por não terem vivido essas histórias não acreditam nas lendas assim como os mais velhos?
C.V: Eles não acreditam por não terem essa vivência, assim como os mais velhos tiveram. Eu acho que hoje em dia a gente encontra resoluções para muitas coisas, por isso fica mais difícil de você acreditar nas lendas.
P.A: Estamos encaminhando para o final, você tem algum projeto para o futuro com este livro, uma versão ampliada ou algo do tipo?
C.V: Eu planejo trabalhar com ele no mestrado. Eu quero fazer uma coisa mais voltada para Atins. Trabalhar mais com essa perda da cultura tradicional, como esses moradores foram retirados do próprio local e quanto essa disparidade financeira torna totalmente difícil essas pessoas voltarem até a Vila de Atins, porque elas vão pra subempregos. Elas trabalham com turismo, mas em subempregos, então a cultura de um povo foi tirada. Pretendo trabalhar mais nesse sentido.
Por Rennan Oliveira
Fotos: Acervo pessoal de Catharina Vale
Acesse o livro aqui: Histórias de encantamento que atravessam o Rio Preguiças.