“O que tem que ser, tem muita força” (Clarice Lispector in A maçã no escuro)
Cerca de dois anos antes de entrar na graduação em Jornalismo, fiz um curso técnico de Eletrotécnica no Instituto Federal do Maranhão. Me sentia deslocada em uma turma predominantemente masculina, incluindo o corpo docente. Tinha dificuldade em algumas disciplinas, em parte devido à base fraca em matemática da minha escola pública, então passava horas na biblioteca estudando para compensar. Em certo momento, um colega começou a implicar comigo e me assediar, incentivado por outros, enquanto um amigo tentava, sem sucesso, me defender. A situação foi piorando até que, um dia na biblioteca, perdi a paciência após mais uma de suas “piadinhas”. Olhei diretamente nos olhos dele, com uma raiva incontida, e expliquei, “calmamente”, que, se ele não saísse da minha frente, eu partiria para a violência física e o denunciaria à direção, não descansando até vê-lo expulso. Minha ameaça funcionou: ele parou e, pouco tempo depois, desistiu do curso. Terminei a formação técnica, mas percebi que não queria seguir na área, pois os meses de assédio que havia sofrido minaram completamente a minha animação. A simples perspectiva de passar por algo semelhante ao exercer a profissão foi suficiente para me desestimular. Pouco tempo depois de finalizar o estágio obrigatório, ingressei no curso de Jornalismo. Esse fato aconteceu há cerca de 15 anos, mas ainda está marcado na minha memória.
Conhecer a Tatiana Pará e o grupo que ela fundou me fez pensar que, talvez, a história que contei acima poderia ter sido totalmente diferente, se houvesse mais mulheres na minha turma e na área ou um grupo como o “Meninas da Geo”. Criada por Tatiana, a iniciativa busca incentivar e fortalecer a presença de mulheres na geociência e áreas relacionadas, como cartografia, geografia, sensoriamento remoto e sistemas de informação geográfica (SIG). O grupo promove ações educativas, oficinas práticas e cria espaços de acolhimento e troca de experiências, além de realizar eventos e palestras. Seu objetivo é inspirar novas gerações e sensibilizar o setor sobre a importância da diversidade e inclusão, contribuindo para reduzir a desigualdade de gênero nesse campo.
Em alguns grupos, o fundador pode se tornar a personificação do projeto, mas essa não é a realidade de Tatiana, nem é o que ela deseja. “No início, confesso que as meninas realmente se confundiam comigo, mas hoje já percebo que Tatiana e as “Meninas da Geo” são entidades separadas. A logo que criamos para elas é um exemplo claro disso: embora algumas pessoas a vejam como uma representação da minha imagem, ela foi desenvolvida coletivamente por outras mulheres do projeto. De forma inspiradora, esse logo se conecta com muitas, pois qualquer mulher que use óculos e se posicione de lado pode se ver representada – brancas, negras, indígenas, altas ou magras, todas se encaixam ali.”
Tatiana Pará sempre foi apaixonada pelas geotecnologias. O projeto “Meninas da Geotecnologia”, funciona atualmente no Instituto Federal do Pará (IFPA), no Campus de Belém, mas “nasceu” no IFPA de Castanhal (PA). “Sou agrônoma de formação e sempre trabalhei com geotecnologias, cartografia, topografia e sensoriamento remoto, minha grande paixão desde os tempos de estudante. Minha trajetória, no entanto, não foi fácil”. Na época em que estudou no IFPA, quando ainda era o CEFET, ela passou por situações muito difíceis, inclusive assédio de um professor. Essa experiência a marcou profundamente. “O que passei me ensinou uma coisa: se algum dia eu me tornasse professora, eu faria de tudo para proteger minhas alunas”.
A história familiar da Tatiana é marcada pela diversidade; sua mãe é de Juruti, com raízes indígenas e influências portuguesas, e seu sobrenome, Pará, reflete essa ancestralidade. Apesar de não passar o sobrenome para seus filhos, mantém viva a conexão com seus parentes. Nascida em uma família pobre na periferia, ela entende a educação como uma ferramenta de mudança social:
“Minha história é um pouco confusa, mas eu vou contar. Nasci branca e tive privilégios que isso pode trazer, mas meus pais eram bem pobres. Morávamos na periferia, mas, por sorte, consegui estudar em colégio particular com bolsa. Inicialmente, tentei fazer Medicina, influenciada pela minha mãe, mas não passei na UFPA [Universidade Federal do Pará]. Acabei me inscrevendo em um curso de Farmácia particular, mas logo percebemos que não teríamos condições financeiras para arcar com os custos. Então, comecei a trabalhar como recepcionista em uma academia para ajudar em casa”.
Durante esse período, conheceu seu namorado, que mais tarde se tornaria seu marido. Juntos, enfrentaram o desafio de manter o relacionamento, já que seus pais desejavam que ela tivesse um emprego fixo. Para passar mais tempo juntos, decidiram se inscrever em um curso técnico no IFPA, onde ela escolheu Agrimensura e ele, Eletrotécnica. Nesse novo caminho, descobriu sua paixão pela geotecnologia. Trabalhando à noite na academia e estudando de manhã no CEFET, viu ali a oportunidade de um futuro promissor. No segundo ano do curso, começou a considerar a graduação e, entre as opções de Geografia, Geologia, Florestal e Agronomia, escolheu Agronomia, principalmente pela maior quantidade de vagas. Apesar das dificuldades em algumas disciplinas, dedicou-se intensamente à topografia, cartografia e sensoriamento remoto, tornando-se monitora e estagiária, sempre apoiada por sua professora Nazaré Maciel.
Ela se formou em 2011 e, logo no último semestre, ingressou em uma especialização em geoprocessamento. No ano seguinte, recebeu uma oportunidade como professora substituta na área de geotecnologia. Mudou-se para Capitão Poço (PA), onde permaneceu por dois anos antes de iniciar seu mestrado. Em 2016, ao terminar o mestrado, surgiu um concurso no IFPA para geotecnologia, que ela encarou como um sinal de que deveria seguir em frente, apesar de algumas frustrações anteriores.
Ao longo de sua jornada profissional, sentiu que cada desafio enfrentado contribuía para seu propósito. “Sempre que considerei mudar de caminho ou desistir, algo acontecia que me fazia persistir. Esse trabalho representa muito para mim, e apesar de algumas pessoas comentarem que dedico minha vida inteira a ele, eu realmente sinto que sem o que faço, minha vida perderia um pouco do sentido. Não que eu ache que preciso ser útil para os outros, mas guardar para mim tudo o que aprendi e construí ao longo dos anos não faria sentido”.
Um momento marcante foi o concurso do IFPA, que coincidiu com sua gravidez. Apesar da possibilidade de desistir para viajar com a família, decidiu se inscrever e, após algumas dificuldades, conseguiu ser aprovada. Eventualmente, teve que escolher entre duas oportunidades de trabalho, optando pelo IFPA e se dedicando para construir sua trajetória ali. A escolha pela área de geotecnologia foi uma decisão estratégica: “percebi que era uma área pouco explorada aqui em Belém e que me permitiria me tornar uma referência. Hoje, tenho orgulho de ser a primeira da minha família a ter um diploma universitário e um mestrado. É gratificante olhar para trás e ver que pude dar apoio aos meus pais, como retribuição por todo o esforço deles. Lembro de uma vez que meu pai hesitou em comprar um sapato mais caro, e eu fiz questão de comprar para ele, pois agora posso retribuir um pouco do que eles sempre fizeram por mim”.
O projeto “Meninas da Geo” foi a forma que a Tatiana encontrou de apoiar mais mulheres na área. Ao entrar como professora no IFPA no campus de Castanhal (PA), ela se deparou com um professor que não apenas maltratava as alunas, mas também as assediava e as excluía das atividades práticas, dizendo que elas “não precisavam aprender”. “Eu cheguei disposta a mudar esse cenário e confrontei a situação de frente. Porém, isso acabou despertando resistência e perseguição. Fiz um boletim de ocorrência, mas tive dificuldades para conseguir medidas protetivas. Esse enfrentamento me colocou em uma posição de embate com certos colegas, que não estavam acostumados a lidar com uma mulher que responde de igual para igual”.
Ela sabe que sua postura firme muitas vezes desafia a expectativa de que uma mulher deve ser mais “meiga”. Tatiana explica que sua força vem de exemplos próximos, como sua mãe e seu esposo, ambos policiais, além de outros familiares no sistema de segurança. Sempre sentiu que, se estivesse no seu direito, poderia reagir e se proteger, com a certeza de que não ficaria desamparada. Isso lhe deu coragem para revidar quando necessário e lutar pelo que acredita, especialmente em defesa de suas alunas e do ambiente inclusivo e seguro que deseja criar. Ela reconhece o privilégio de ter uma rede de proteção, com seu pai e sua família sempre ao seu lado, o que lhe deu a liberdade para ser quem é hoje.
A experiência no IFPA foi desafiadora, mas também a impulsionou a voltar como professora e a enfrentar o ambiente que mais a machucou. “É uma escolha difícil de entender, até psicologicamente, mas eu quis estar exatamente onde vivi minhas maiores dificuldades”. Ao chegar em Castanhal (PA) e perceber que as alunas não estavam aprendendo certos conteúdos, como topografia, perguntou o motivo e logo ouviu relatos de que um professor simplesmente não ensinava essas práticas, especialmente para as alunas. “Foi aí que decidi criar o projeto “Meninas da Geotecnologia”, onde passei a oferecer, no contraturno, aulas e apoio técnico para complementar a formação dessas estudantes. Minha ideia inicial era ser um suporte técnico-científico para as alunas, cobrindo tópicos que elas não estavam recebendo adequadamente”.
O projeto “Meninas da Geo” começou em 2019 de maneira informal, com encontros nos corredores, mas ganhou formalidade ao se associar à iniciativa “Meninas Digitais” da Sociedade Brasileira de Computação. Embora Tatiana tenha formação em agronomia, seu interesse por tecnologia e informática a levou a desenvolver habilidades em geoprocessamento e programação. A parceria com o programa Meninas Digitais trouxe apoio e estrutura, permitindo a solicitação de uma sala e recursos no IFPA, além do registro do projeto como uma extensão. Entretanto, Tatiana enfrentou resistência ao apresentar o projeto.
“No início, quando apresentei o projeto para a diretoria e ele foi protocolado, houve resistência e até comentários que acusavam o nome de ser “segregador”, sugerindo que mudássemos o nome para algo mais “inclusivo”. A preocupação parecia ser com a exclusão dos meninos, mas o foco sempre foi criar um espaço seguro e acolhedor para mulheres, especialmente as mais maduras e mães, que enfrentam barreiras adicionais para se manter no ambiente acadêmico e no mercado. Nosso objetivo é oferecer essa estrutura de apoio, algo que já existe em outras áreas, mas que ainda era raro em campos como agronomia e tecnologia”.
O objetivo do projeto é promover a participação feminina em áreas técnicas, proporcionando suporte e visibilidade às mulheres. O nome “Meninas da Geo” é simbólico, reforçando um espaço de incentivo e empoderamento, onde as alunas se sintam parte de uma comunidade que as compreende e apoia, mesmo diante de críticas. Antes da pandemia, o grupo começou a expandir para comunidades rurais, oferecendo oficinas de GPS e mapeamentos. Com a pandemia, as atividades foram adaptadas para o formato online.
“Eventualmente, tivemos meninos participando, especialmente aqueles que se identificam com outras orientações sexuais e que buscam um ambiente mais acolhedor, onde podem estudar e se expressar sem julgamentos. Em muitos casos, eles vêm por se sentirem mais confortáveis em um espaço que não os questiona. Isso enriquece o projeto e fortalece nossa missão de criar um ambiente inclusivo e acolhedor para todos, mas sem perder o foco inicial de apoio às mulheres”, explica Tatiana.
O projeto iniciou com cerca de 25 a 30 alunas, mas ao longo do tempo, esse número variou, mantendo um grupo ativo de 15 a 20 participantes. Em seus cinco anos de existência, o projeto alcançou cerca de 70% de inserção no mercado de trabalho para as formadas, muitas das quais conseguiram estágios avançados ou ofertas de emprego para após a formatura. Empresas da região frequentemente buscam as alunas com habilidades específicas, especialmente em geotecnologias, o que reflete o impacto positivo do projeto. Além disso, o projeto expandiu suas atividades para comunidades rurais, oferecendo oficinas e serviços de mapeamento.
O “Meninas da Geotecnologia” evoluiu, tornando-se um espaço de aprendizado técnico e inclusão social. “Na verdade, a aceitação por parte da gestão não veio de imediato, mas foi uma conquista estratégica, graças ao compromisso com o ODS 5. [Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5, estabelecido pela Agenda 2030 da ONU, visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas até 2030]. No IFPA, somos o único projeto, agora também grupo de pesquisa, com uma linha específica de gênero. Existem iniciativas ligadas à diversidade, mas nenhuma com foco em gênero como a nossa. Então, com o tempo, a gestão começou a perceber os pontos positivos – redução de evasão, inclusão e valorização das participantes – o que trouxe benefícios também para a instituição.”
Tatiana se orgulha da trajetória que construiu até aqui. Durante nossa conversa, ela riu de nervoso apenas quando perguntei sobre sua passagem pela política. Ao pesquisar sobre ela, encontrei um santinho de sua candidatura a vereadora por Belém. Entre risos, Tatiana foi sincera e explicou que, embora tenha sido uma experiência marcante, não se orgulha desse episódio.
Durante sua campanha, ela se decepcionou ao perceber que seu compromisso com princípios e a recusa a acordos desonestos não se encaixavam no jogo político. Embora tenha recebido 1.300 votos, principalmente por sua campanha online, a experiência a fez perceber as promessas vazias e o ambiente misógino da política. Com um plano estruturado para áreas como educação e meio ambiente, ela se frustrava ao ver que as mudanças que acreditava serem possíveis não aconteciam. Hoje, com frustração e aprendizado, Tatiana conclui que talvez tenha sido melhor assim.
Espero que mais pessoas conheçam não só a sua história, mas também o projeto “Meninas da Geo”. Para encerrar o texto, compartilho mais uma conquista: Tatiana é a primeira mulher do Norte do Brasil a ser escolhida como uma das lideranças em ascensão pelo Geospatial World 50 Rising Star. Em 2023, ela foi a única brasileira a integrar a lista, composta por 50 jovens lideranças de 30 países.