Neste mês, decidimos dedicar espaço no Dias Mulheres Virão a mulheres que muitas vezes não têm suas histórias perguntadas, escutadas e contadas: nossas mães.
Escrever sobre a minha mãe poderia ser algo simples. Nome: Maria Ivoneide Conceição do Nascimento. Profissão: Cuidadora Social. Sonho: Viajar. Medo: Não tem.
Mas não é.

Minha mãe é uma mulher que eu conheço no desconhecimento. Ela é cheia de camadas. Perdas. Tristezas. Alegrias disfarçadas. Não se abre com muitas pessoas porque não confia. Depois de muita luta, ela decidiu me dar uma “entrevista”, que para mim foi mais uma conversa: deitadas na cama, tentando entender um pouquinho sobre ela.
Maria Ivoneide, minha mãe, nasceu, cresceu e ainda vive no mesmo lugar de sempre: a Rua Coronel Manoel Bandeira, no centro de Imperatriz. Passou todos esses anos em uma casa com uma sala, uma cozinha, três quartos pequenos e um quintal. As paredes eram sempre pintadas em tons claros, que, com o tempo, começavam a manchar.
Morava com o pai, José Maria, a mãe, Maria da Conceição, e os irmãos: Joselito, José Carlos, Maria Delurdes, Maria Ivonete e Maria Francisca. É uma família de muitas Marias e Josés. “Era uma casa cheia, animada, de briga”, conta, rindo. Hoje, a casa continua cheia, mas com pessoas diferentes. Minha mãe mora com o irmão, José Carlos, e suas três filhas: Yonara, Ana Maria (eu) e Alicia Samantha. Cada uma diferente em ser, agir e pensar. Cada uma com a personalidade briguenta da mãe.
Entre as lembranças da infância, ela me conta que o que mais a marca são as comidas: o feijão com ossada da mãe dela, o cozidão, os geladinhos de coco e banana. Sua relação tão íntima com a comida agora faz todo sentido para mim: é cozinhando que ela mantém viva a conexão com a mãe.
É cozinhando que ela se lembra dos bons tempos. Minha mãe também teve a sorte de crescer em uma rua cheia de crianças. Brincadeiras nunca faltaram: ‘queima’, ‘cai no poço’ e tantas outras que enchiam seus dias de vida.
Minha mãe perdeu a mãe aos 15 anos. “Ela adoeceu. Começou com uma dor de cabeça, foi para o hospital, ficou internada… Depois voltou para casa. Morreu na caminha dela”, diz. “Perder ela é uma dor que não tem explicação do tamanho que é”. Minha avó, Maria da Conceição, sofreu um derrame cerebral. E, naquele dia, uma parte da minha mãe também se foi. Meu avô, José Maria, ficou responsável por cuidar dos cinco filhos, enquanto trabalhava em uma cerâmica como queimador. Foi ele quem assumiu o papel de pai e mãe, tentando dar conta da ausência que ficou na casa.
Ela começou a trabalhar aos 14 anos, na casa da tia Benedita. Foi ali que aprendeu a cuidar de uma casa, já que cozinhava e limpava. Só não lavava roupa, o que para ela era um alívio, já que nunca gostou muito dessa parte. O que ganhava era pouco, mas o suficiente. No fim do mês, conseguia juntar um dinheirinho que usava para comprar suas roupas e calçados. Com o passar dos anos, os trabalhos da minha mãe mudaram bastante.

Já foi vendedora em loja de móveis, trabalhou com recadastramento mobiliário e passou alguns anos na Circunscrição Regional de Trânsito (Ciretran), atuando como auxiliar de serviços gerais. Depois, foi auxiliar de cozinha em uma pizzaria da cidade por 4 anos. Mais tarde, trabalhou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde se encontrou um pouco mais. Era um ambiente tranquilo, e ela ainda cozinhava pratos que gostava. Isso a deixava feliz.
Há dois anos, ela é cuidadora social em uma escola da rede municipal. Cuida e auxilia crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) em tarefas escolares e na socialização com outras crianças. Minha mãe nunca foi uma mulher conhecida pela paciência e ela mesma admite isso. Mas desde que começou a trabalhar com essas crianças, algo mudou.
Todos os dias ela precisa praticar a escuta, a calma, o cuidado. E, de algum jeito, esse exercício diário começou a se refletir em casa também. Apesar dos desafios, “é gratificante. É um tratamento diferenciado. A gente vai compreendendo elas, entendendo do que gostam. Você vai aprendendo no dia a dia”, fala.
Minha mãe estudou o ensino fundamental na Escola Municipal União. Depois, concluiu o ensino médio no Complexo Educacional Amaral Raposo. Fez o curso de magistério, que, na época, habilitava para dar aulas da 1ª à 4ª série. Hoje, isso não é mais suficiente, é preciso ter uma formação completa em Pedagogia. Mesmo com o magistério, o sonho dela sempre foi outro: ser psicóloga. Ela ainda diz que dá tempo de fazer o curso. Mas minha mãe é uma mulher que quer descanso. Depois de tantos anos lutando, ela quer ter o “luxo” de querer só um pouco de paz.

Ela não seguiu esse sonho porque, aos 22 anos, teve sua primeira filha: Yonara. Dois anos depois, eu nasci [Ana Maria]. Durante minha gestação, com apenas três meses de gravidez, minha mãe perdeu o namorado em um acidente de trabalho. Se já era difícil cuidar de uma criança com ajuda, agora seria ainda mais desafiador criar duas sozinhas. Mas minha mãe nunca deixou faltar nada. Mudou de emprego muitas vezes, sempre buscando algo que pagasse melhor, que fosse perto de casa, que permitisse conciliar as nossas idas à escola, o preparo do almoço e até o reforço escolar. “Não é fácil. Não foi fácil e nem será fácil. É matar um leão todo dia pra não deixar faltar nada, nada”, explica.
Sete anos depois que eu nasci, veio Alicia, a caçula. Ela foi fruto de um relacionamento que minha mãe acreditava que se tornaria um casamento. Não deu certo. Ela me disse que o grande sonho dela era casar. Mas, com o tempo e algumas frustrações, esse desejo foi se apagando. Quando um sonho não é cultivado, ele acaba morrendo aos poucos. “Com certeza vocês queriam um pai, né. Uma figura masculina do lado, mas não foi possível”, ela me diz.
Para minha mãe, a sua maior referência é e sempre vai ser a sua mãe, Maria. Perguntei o que ela faz quando sente medo, na minha cabeça isso é impossível para as mães. Esqueço que ela é tão frágil quanto eu.
“Medo todo mundo tem, mas a gente disfarça e passa por cima. Eu vou lá e peço força pra minha mãezinha, pra dona Benedita, pro meu pai. Parece que eles mandam algo que me fortalece e sigo”. O seu maior sonho hoje é conhecer esse mundo. “Hoje eu só quero viajar, relaxar e curtir a vida. Sem pensar no amanhã. E com uma conta bancária bem recheada. De que conta eu vou tirar esse dinheiro? Não sei”, me conta rindo. Seus sonhos mudaram muito por causa da trajetória que sua vida tomou, mas ela agora diz que esse é o momento de conhecer mais. E ela tem toda razão.
Acho que a palavra medo não cabe na vida da minha mãe.
Um dia, mexendo em antigos álbuns de fotografia, encontrei um livro de memórias da minha mãe. Lá estavam registradas suas coisas favoritas: o que ela queria ser quando crescesse, sua cor preferida, e claro, seu livro do coração. Descobri, então, que o favorito era O Pequeno Príncipe. Curiosa, perguntei se ela realmente tinha lido. A pergunta saiu com um tom de dúvida, quase como se eu não acreditasse, e me arrependi na mesma hora. Não cabia a mim questionar isso.
Meses depois, decidi ler O Pequeno Príncipe. E ali eu entendi. Entendi por que aquele era o livro que mais tocava minha mãe. A história fala, de forma sutil e poética, sobre a perda da inocência, da fantasia, da leveza: tudo aquilo que a vida adulta, aos poucos, vai levando.
Acho que, na época em que leu, minha mãe pode ter se encantado pelas ilustrações, pelos personagens, pelos planetas. Mas, de alguma forma, aquela história já falava com ela. E hoje, com tantas responsabilidades que assumiu ao longo dos anos, ela provavelmente entende ainda mais o significado de tudo aquilo.
Quando terminei de fazer todas as perguntas para essa conversa, ela se levantou da cama num pulo e foi direto pro sofá, pronta pra ver sua novela e tirar seus cochilos sagrados. Essa é Maria Ivoneide. Essa é a minha mãe!
Sou Ana Maria Nascimento (ana.mcn@discente.ufma.br), estudante do 7° período do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Imperatriz/MA. Gosto muito de escrever conteúdos culturais e acredito que o jornalismo se faz no encontro com o outro e na escuta que respeita.
LinkedIn: www.linkedin.com/in/ana-maria-conceição-do-nascimento2
Instagram: ana_mariacn