Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu’alma ─ a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, ─ eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.
(Trecho de O meu desejo, de Maria Firmina dos Reis)
Maria Firmina dos Reis, nasceu em 11 de março de 1822, na Ilha de São Luís, Maranhão. É considerada uma figura notável na história da literatura brasileira. Ela é amplamente reconhecida como a primeira romancista negra do Brasil e uma fervorosa abolicionista. Além de suas contribuições literárias, também atuou como professora primária e musicista. Sua vida e obra são um testemunho da força e coragem que moldaram sua jornada.
Em uma São Luís (MA) fervente do ano de 1860, um anúncio literário ecoou pelas páginas do jornal “A Moderação,” sacudindo o cenário da literatura brasileira. O título da notícia era intrigante: “Romance Úrsula – Original Brasileiro.” Porém, o que realmente chocou os leitores foi o nome no fim do anúncio: “exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães.” Poucos poderiam imaginar que essa mulher, filha de uma mãe alforriada e um pai de identidade obscura, estava prestes a se tornar uma pioneira da literatura brasileira e uma ferrenha opositora da escravidão.
Firmina (1822 – 1917) desafiou as convenções da época não apenas ao escrever um romance, mas ao abordar temas revolucionários. Enquanto a escravidão era uma realidade cruel no Brasil, ela deu voz e humanidade aos personagens escravizados em seu romance “Úrsula.” Como observa a professora Régia Agostinho da Silva, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a escritora retratou os escravos como “nobreza generosa”, tratando-os com igualdade em relação aos brancos e permitindo que eles contassem suas próprias histórias, o que foi precursor de futuras obras abolicionistas.
A relação de Maria Firmina com a literatura começou cedo, quando ela mudou-se para a casa de uma tia em Guimarães em 1830. Ela teve contato com referências culturais e com parentes envolvidos com o meio cultural, alimentando sua paixão pelas letras. Sua postura antiescravista ficou evidente quando, após se tornar professora em 1847, recusou-se a desfilar em um palanque carregado por escravos. Esse evento simbólico demonstrou sua firmeza de espírito em relação à questão da escravidão. No entanto, a estabilidade e respeito conquistados como professora possibilitaram que ela publicasse seu primeiro romance, “Úrsula,” e finalmente expressasse sua visão sobre o tema.
“Úrsula” era diferente de outras obras da época, pois não era simplesmente “perfumaria.” Era o primeiro livro brasileiro a se posicionar contra a escravidão e fazê-lo sob a perspectiva dos escravizados. No romance, Firmina expôs a crueldade de personagens como o vilão Fernando, senhor de escravos. No entanto, o destaque do livro foi a personagem Suzana, uma escrava que lembrava com tristeza de sua liberdade na África. Isso caracterizava o estilo único de Firmina, dando voz aos escravos que ansiavam por liberdade e por voltar ao lar.
Maria Firmina dos Reis desafiou também as normas sociais da época, tornando-se a primeira mulher a passar em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora de ensino fundamental. Ela não apenas se sustentou com seu próprio salário, algo raro para as mulheres da época, mas também criou a primeira escola mista para meninos e meninas em Guimarães (MA), causando um escândalo na cidade.
Em 1887, já consolidada como escritora e professora, Maria Firmina dos Reis publicou o conto “A Escrava,” que oferecia uma crítica mais direta à escravidão. A protagonista do conto diz de forma enfática que o regime “é e sempre será um grande mal.” Nessa época, o movimento abolicionista estava mais difundido no Brasil, permitindo a Firmina expressar com mais força suas convicções antiescravistas.
Maria Firmina dos Reis escreveu poesias, contos e composições musicais. Abaixo a lista de suas obras a partir do livro Escritoras brasileiras do século XIX: Antologia.
- Úrsula. Romance, 1859.
- Gupeva. Romance, 1861/1862 (O jardim dos Maranhenses) e 1863 (Porto Livre e Eco da Juventude).
- Poemas em: Parnaso maranhense, 1861.
- A escrava. Conto, 1887 (A Revista Maranhense n° 3)
- Cantos à beira-mar. Poesias, 1871.
- Hino da libertação dos escravos. 1888.
- Poemas em: A Imprensa, Publicador Maranhense; A Verdadeira Marmota; Almanaque de Lembranças Brasileiras; Eco da Juventude; Semanário Maranhense; O Jardim dos Maranhenses; Porto Livre; O Domingo; O País; A Revista Maranhense; Diário do Maranhão; Pacotilha; Federalista.
- Composições musicais: Auto de bumba-meu-boi (letra e música); Valsa (letra de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis); Hino à Mocidade (letra e música); Hino à liberdade dos escravos (letra e música); Rosinha, valsa (letra e música); Pastor estrela do oriente (letra e música); Canto de recordação (“à Praia de Cumã”; letra e música).
Apesar de sua contribuição significativa, Maria Firmina dos Reis ficou relegada ao esquecimento após sua morte, possivelmente devido à ousadia de suas críticas à escravidão. Mesmo com sua notoriedade, a escritora enfrentou o silenciamento de sua obra e foi apenas em 1962 que o historiador Horácio de Almeida resgatou seu trabalho em um sebo no Rio de Janeiro. Sua biografia é um quebra-cabeça incompleto, com poucas informações sobre outros textos que ela possa ter escrito ou detalhes de sua vida pessoal. Além disso, suas características físicas são incertas e o próprio busto da escritora a retrata de forma errônea, destacando a necessidade contínua de explorar sua vida e obra.
Em 2022, Firmina foi a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), um dos maiores eventos literários do Brasil e que ocorre na cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. A Flip destacou o legado da autora na vigilância dos valores humanos e educação para a imaginação. Apontando também que “as personagens e narrativas memoráveis de Maria Firmina têm inspirado coletivos de leitura, professoras e autoras contemporâneas com sua linguagem, imagens e abordagens de um Brasil real e ficcional que atravessa 200 anos de uma independência controversa”.
Maria Firmina dos Reis é um exemplo de resiliência e coragem em meio a um período de opressão. É também um farol de inspiração para todos que buscam justiça, igualdade e a capacidade de desafiar o status quo através da educação e da literatura. A construção de sua fortuna crítica está em andamento e com o tempo, esperamos descobrir mais sobre essa autora extraordinária que desafiou a norma e contribuiu significativamente para a luta antiescravista no nosso país.