Maria Aragão: Médica e militante política
Maria Aragão. Ilustração: Idayane Ferreira

“Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas, há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.” (Bertolt Brecht)

Mulher, negra e pobre, Maria Aragão desafiou as expectativas, tornando-se médica e defensora dos oprimidos. Nascida em 10 de fevereiro de 1910 em Engenho Central, no município maranhense de Pindaré-Mirim, com o nome Maria José de Camargo Aragão, era a terceira de sete filhos de Emídio Aragão, guarda-fios descendente de africanos, e de Maria José Camargo Aragão, analfabeta determinada na educação dos filhos.

Mudou-se para São Luís, sob a influência da mãe. Ali deu-se início a sua jornada educacional, alimentando o sonho de se tornar médica. A mãe, consciente das dificuldades, guiou seus filhos pela noite nos estudos, ensinando-lhes que a educação seria a chave para superar a fome.

“Havia dias em que não se tinha o que comer mesmo, ela [a mãe de Maria Aragão] fazia um mingau de farinha seca. Dessa farinha branca, que nós chamamos de farinha seca e dava uma tigela pra cada um. Não era com açúcar, não era com leite, era temperado com sal. Eu não achava ruim, interessante, e a gente tomava aquela tigela de mingau quente e dizia: – A gente não vai pro colégio, não tem hoje o que comer. Ela dizia assim: – Não! tem de ir para o colégio, pra aprender, a gente só pode subir, só pode ter bom emprego, só pode ser formado, se estudar, tem que ir pro colégio”, relembra Maria Aragão em relato biográfico “Maria por Maria”, organizado por Euclides Moreira Neto

Seu percurso na Medicina começou em 1934, no Rio de Janeiro. Em meio a sacrifícios e privações realizou o sonho de estudar Medicina na antiga Universidade do Brasil. Enfrentou desafios financeiros e doenças. Noites de apenas três horas de sono e fome quase a fizeram desistir, mas sua determinação prevaleceu.  

 “Eu quis estudar Medicina, porque eu achava muito admirável um médico que era o amigo da gente, e a amizade ficou, porque ele foi nos visitar uma vez, algum de nós estava doente e ele não cobrou, porque viu nossa miséria, e eu achei aquilo muito bonito. Eu tinha sempre a vontade de ajudar, de que pudesse ser útil. A fome que nós passávamos era muito grande e eu achava que devia ter um jeito de se acabar com a fome, porque eu sabia que outras pessoas também passavam fome.”

Formou-se em 1942, atuando inicialmente na área da pediatria. No Rio Grande do Sul, onde trabalhou, enfrentou o preconceito por ser mãe solteira e seu destino deu uma guinada trágica com a morte de sua filha durante uma epidemia, levando-a a redirecionar sua carreira para a ginecologia.  

“1942, em plena guerra, eu fui de trem para o Rio Grande do Sul, com a minha filha [Clarice] no colo. Meses depois a menina morreu, teve uma epidemia de disenteria bacilar, não tinha antibiótico na época, e ela foi uma das poucas vítimas dessa epidemia. […] perder aquela filha pra mim foi uma das coisas mais dolorosas da vida, uma das coisas mais dolorosas, e eu pirei. Eu não conseguia trabalhar com criança, embora fosse pediatra e adorasse trabalhar com crianças, ainda hoje adoro crianças, e eu não conseguia trabalhar. Naquela época, eu entrava na sala do consultório, via aquelas crianças e saía pela porta dos fundos. Então, ia para rua andar, andar, andar… Eu ficava pensando:  Isso não podia ser. Tinha perdido outra qualidade, que eu acho que é uma das minhas características, além de teimosa, de autossuficiência, é paixão pela vida, que eu conservo”. 

Em 1944, impactada pela eloquência de Carlos Prestes em um comício histórico, Maria Aragão encontrou no Partido Comunista (PCB) um caminho para canalizar sua indignação. O retorno ao Maranhão em 1945 marcou o início de sua intensa atividade política no partido, com a missão de reforçar o partido no estado. Ela mergulhou de cabeça na organização e fortalecimento do partido na região, enfrentando perseguições e difamações. Na época, o PCB chegou a ter mais de dois mil militantes, incluindo o interior, onde a médica era tratada como prostituta ou besta-fera por alguns padres que incitavam a população contra ela, dizendo que “comia criancinhas”. Mandavam tocar o sino a dobre de finados, símbolo da morte de alguém, quando Maria Aragão chegava aos municípios em suas muitas viagens ao interior. Na cidade de Codó chegou a ser apedrejada.  

A década de 60, sob o peso do regime militar, testemunhou a coragem de Maria Aragão. Enfrentando as oligarquias políticas, ela resistiu às perseguições e represálias impostas pela ditadura. Sua liderança no Partido Comunista Brasileiro, aliada à direção do jornal Tribuna do Povo, transformou-a em uma figura destacada na resistência contra a opressão.

Mesmo durante a Ditadura Militar (1964-1985), ela manteve sua atuação médica como uma bandeira de resistência, enfrentando humilhações ao atender pacientes em seu consultório sob a vigilância policial. Presa em diferentes momentos, inclusive sendo brutalmente torturada em 1973, Maria Aragão permaneceu resiliente.

“No dia 17 [maio de 1973], foi dia 17, eu ia cedo pro trabalho, estava pronta pra ir pro trabalho, eram seis horas da manhã, eu estava fazendo café pra tomar e sair, já vestida, pronta pra sair, quando batem na porta, eu vou ver, era um grupo da Polícia Federal e tinha um militar. Eles disseram: Está aqui uma ordem de busca e apreensão e a senhora está convidada a prestar declaração lá na Polícia Federal. Tem uma pessoa que chegou e está lá para ouvir a senhora. […] No outro dia, ou nesse dia, começou o interrogatório. Esse interrogatório foi muito duro, foi muito duro, vendada, vendada, queria saber quem era daqui, quem era comunista, não sei, eu sei que lá tem oposicionista, comunista eu não sei, sabe.”

Sua coragem reverberou não apenas nas manifestações políticas, mas também na dedicação à medicina, atendendo gratuitamente por anos. Movida por um senso inabalável de justiça social, Maria Aragão abraçou a ideologia comunista e tornou-se uma incansável lutadora pelos direitos das mulheres. A medicina, para ela, era mais do que uma profissão; era uma ferramenta para promover mudanças sociais. 

Ao alinhar-se a Luiz Carlos Prestes na ruptura com o PCB em 1980, ela reafirmou seu compromisso com ideais libertários, juntando-se à Corrente Prestista. Sua trajetória, marcada pela liderança no Partido Comunista Brasileiro, direção do jornal Tribuna do Povo e luta contra a ditadura militar, fez dela uma referência na luta popular do Maranhão. Maria Aragão faleceu aos 81 anos, em 23 de julho de 1991, deixando um legado de coragem e determinação.

Seus amigos fundaram o Instituto Maria Aragão em 2001, mantendo viva a luta pelos direitos humanos. O Memorial Maria Aragão, inaugurado em 2004, no Centro Histórico da capital maranhense, São Luís, é um tributo à sua vida, projetado por Oscar Niemeyer para preservar a memória da “besta fera” que desafiou preconceitos e injustiças, inspirando gerações a transformar indignação em ação.

Maria Aragão transcendeu as barreiras da adversidade para se tornar uma figura monumental na história do Brasil. Seu legado vai além das fronteiras políticas, refletindo-se em um compromisso genuíno com os menos favorecidos. Sua vida é um testemunho de coragem, desprendimento e determinação em meio a uma época de preconceitos e discriminações. 

Idayane Ferreira

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