Antes de 2016, as festas voltadas para o público LGBTQIA+ apresentavam pouca diversidade e eram restritas a áreas periféricas. Nesta entrevista em formato de ping-pong, o Portal Assobiar conversa com produtor de eventos Francisco Cambraia sobre a origem da Trópico — inicialmente uma festa que, mais tarde, se transformou em uma produtora —, sua consolidação no meio LGBTQIA+ e a criação de novos nichos de eventos dentro da produtora.
O ano era 2016. Na casa da DJ Juliana Alba, localizada na Rua Duque de Caxias, no bairro Bacuri, Francisco Cambraia, então com 25 anos, se reunia com amigos em uma noite de abril. O encontro girava em torno de conversas sobre cultura pop e videoclipes de artistas femininas — uma atividade comum entre pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. A casa de Juliana era um ponto de encontro acolhedor para quem desejava socializar dentro do meio LGBTQIA+.
Em determinado momento, Francisco comentou com nostalgia: “As festas GLS morreram, né? Quase não tem mais festas com músicas pop.” Foi então que Jefferson Carvalho, seu amigo inseparável na época, sugeriu: “Vamos fazer uma festa. Tem a Urubu, que é mais para o pessoal alternativo, a gente pode criar a nossa.”
A sugestão acendeu uma ideia na mente de Cambraia. “Vamos fazer uma festa só para amigos. Nosso círculo de amizades é grande, vai dar muita gente!” Naquele instante, começaram a imaginar o nome do evento. Cambraia lembrou-se do short film lançado pela cantora Lana Del Rey em 2013 e propôs: “A festa vai se chamar Trópico, assim como no clipe da Lana Del Rey.”
O nome ganhou mais significado do que eles imaginavam. Geograficamente, “trópico” refere-se às linhas imaginárias que circulam o planeta e delimitam zonas de altas temperaturas. De forma simbólica, a festa Trópico prometia uma grandiosidade semelhante, irradiando energia e impacto cultural.
Quase oito anos depois, Francisco Cambraia tornou-se o principal produtor de eventos LGBTQIA+ de Imperatriz. Hoje, a segunda maior cidade do Maranhão conta apenas com a Trópico para representar esse segmento. Antes dela, eventos como ElectroLions, Todd’s Brinks, Glitter e Reveillon da Tradição Diana Kelly fizeram parte da história da cultura gay na cidade. No entanto, a maioria dessas festas eram realizadas em locais afastados e marginalizados.
Na época, o termo GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) ainda era utilizado, e a compreensão sobre diversidade sexual e de gênero era limitada. A Trópico mudou esse cenário, trazendo as festas LGBTQIA+ para o centro das atenções e ocupando espaços antes dominados por eventos para o público heterossexual.
Mas será que tudo é luta, ou pode se misturar com festa? O sociólogo Marcos Madjer reflete sobre o contexto de Imperatriz, uma cidade conservadora que não comporta eventos de grande visibilidade política, como uma Parada LGBTQIA+ nos moldes de São Luís. Ele explica: “Os espaços de entretenimento voltados às pessoas LGBTQIA+, como festas e casas de eventos, tornam-se importantes à medida que é nestes lugares que elas se sentem, de algum modo, representadas. Ao mesmo tempo que o cenário é de marginalização e exclusão da pessoa LGBTQIA+, lugares reservados ao seu entretenimento passam a compor um espaço de pertencimento social. Assim, pessoas LGBTQIA+ tendem a imaginar que, de alguma maneira, estão sendo incluídas à estrutura social.”
Confira a entrevista com Francisco Cambraia:
Portal Assobiar (PA): Como foi que surgiu a Trópico?
Francisco Cambraia (FC): Acho que, na época em que a Trópico surgiu, nem eu, nem quem estava comigo, tinha plena noção do papel mais importante que ela desempenharia. Naquele momento, queríamos algo, mesmo sem entender totalmente o processo. Estávamos buscando nos sentir incluídos. Foi aí que reunimos um grupo de amigos: eu, Juliana Alba, Jefferson Carvalho, Léo Jesus e várias outras pessoas. Conversamos e decidimos criar um projeto voltado para amigos, lá em 2016, para que pudéssemos nos sentir à vontade e ouvir as músicas que queríamos.
Esse projeto aconteceu, pela primeira vez, como uma festa entre amigos. A partir dessa festa, surgiu a ideia de realizar outras edições. Aos poucos, o projeto foi se profissionalizando de tal forma que outras pessoas também queriam participar. Ainda assim, ele começou de maneira despretensiosa, com o objetivo de criar um espaço onde pudéssemos nos sentir acolhidos.
PA: Após a primeira festa, você percebeu que ela havia feito sucesso e que poderia crescer significativamente?
FC: Naquele momento, não. Acho que foi ao longo das festas seguintes, quando outras pessoas demonstraram interesse, especialmente na segunda ou terceira edição. Foi então que percebi que aquilo não era apenas uma festa, mas o início de um movimento.
PA: Como surgiu o entendimento de que a festa estava se transformando em um movimento?
FC: Eu até comentei isso recentemente: foi a minha vivência com outras pessoas LGBTQIA+ e o contato com o meio social em que eu estava inserido que me fizeram enxergar isso. Até então, eu não tinha tanto conhecimento sobre quem eu era e fui me descobrindo junto com a Trópico. Quando comecei, carregava muitos preconceitos sobre minha própria identidade e sentia vergonha de ser uma pessoa LGBTQIA+. Foi convivendo e aprendendo com as pessoas que produziam e se interessavam pela festa que eu entendi o quanto aquele espaço era necessário, tanto para mim quanto para os outros.
Com o tempo, percebi que a Trópico era mais do que uma festa: era um espaço onde todos podiam se sentir confortáveis, acolhidos. Essa percepção cresceu e ajudou a festa a criar um senso de movimento. Nos anos seguintes, esse crescimento gerou incômodo em algumas pessoas, especialmente no lado mais conservador da cidade, mas isso só fortaleceu a rede que estávamos construindo.
PA: Antes da Trópico, as antigas festas LGBT+ eram muito escondidas. Elas aconteciam em bairros distantes, na periferia, em locais pouco iluminados. A Trópico trouxe visibilidade e luz para as festas LGBT+?
FC: Quando começamos, havia uma crítica interna aos movimentos e festas que se escondiam, mas entendo que foi um processo até nos expormos sem medo. Sabemos que o caminho foi aberto por essas pessoas, que, embora discretas, abriram as portas para nós. Queríamos nos mostrar, ocupar os espaços e afirmar que a festa era para o público LGBTQIAPN+, mesmo que, na época, a sigla fosse “GLS”. A Trópico foi a primeira festa de Imperatriz a ter um Instagram, enquanto outras ainda se divulgavam de boca a boca ou em grupos no Facebook, sem falar abertamente sobre ser voltada para a comunidade. Havia medo, não só do preconceito, mas também de ataques. A Trópico desmistificou isso, mostrando que as festas não eram promíscuas, mas espaços de pessoas reais vivendo como queriam. Até 2018, as pessoas viam com estranhamento, como se estivessem indo a um zoológico. Isso mudou. A Trópico foi pioneira em normalizar a diversão e a leveza da vida LGBTQIAPN+. Hoje, a Trópico não acontece com a mesma frequência, pois, além de meu trabalho CLT, prefiro preservar minha saúde mental. Nos últimos anos, reduziu para três edições; este ano, fiz uma, e no próximo, será apenas uma. Prefiro fazer uma por ano agora.
PA: Ela se tornou uma produtora e também tem outras marcas e festas. Como surgiram essas outras marcas? Eu vi que surgiu a Macete, você pode falar mais sobre ela?
FC: Eu acho que a Macete começou dentro da Trópico, mas se fortaleceu por ser um evento que transforma nossa identidade periférica em algo glamouroso, o que acho muito legal. A festa permite ir de chinelo e ainda assim estar estiloso, dando glamour ao que é geralmente inferiorizado. Isso a torna forte na cultura periférica. Este ano, nossa inspiração foi a paleta de cores da Lander Mix, um movimento de reggae periférico de Santa Rita. A Lander Mix percorreu os bairros e povoados locais, sendo marginalizada, e quis fazer um tributo a esse lado histórico do reggae em Imperatriz. Hoje, a Macete é uma marca que, embora esteja dentro da Trópico, caminha com seus próprios passos.
PA: De certa forma, ela não celebra apenas o movimento LGBT, mas também o movimento negro, não é?
FC: Exatamente isso.
PA: Quando você percebeu que a cidade precisava de uma Macete?
FC: A Macete surgiu da percepção da diferenciação de público em festas como a Trópico e de uma ideia que nasceu durante a pandemia, mas só aconteceu em 2022. Inspirada em festas como a Batekoo, no Rio de Janeiro, a Macete nasceu como um movimento que coloca a cultura negra e periférica no centro, com protagonismo para a população preta, que representa 70% do público. Não é uma festa exclusiva, mas celebra a cultura negra e periférica, com um foco no público LGBT preto. A ideia é que todos apreciem, mas com a consciência de que o palco também é nosso.
PA: Por causa disso, você já sofreu algum ataque ou preconceito?
FC: Hoje em dia, a Trópico movimenta financeiramente, o que facilita a aceitação da proposta, antes ignorada por muitos. O público LGBTQIA+, devido à falta de opções, acaba indo de forma mais ativa aos eventos da Trópico. As pessoas ainda têm preconceitos, claro, mas mascaram um pouco, especialmente quando o evento tem um grande retorno financeiro. Já passei por situações em que, ao propor meus eventos, algumas pessoas tentavam mudar a data ou o horário para não “agredir” o espaço. Hoje, sou mais explícito: “Meu evento é para viado e sapatão”. Contrato uma equipe de som e segurança, mas sempre converso com eles para garantir que não haja discriminação. Eu preciso conscientizar os prestadores de serviço, principalmente os cisgêneros e brancos, sobre o meu evento, porque não temos empresas especializadas em assessoria LGBT. Às vezes, ainda enfrento preconceito, como aumento de preços ou resistência de fornecedores. Mas, com a rede de contatos que construí ao longo dos anos, isso não tem sido um grande problema. No fim, o financeiro ainda pesa muito, e as pessoas acabam “engolindo” o preconceito, mas sempre busco conscientizar.
“Hoje, a Trópico é rentável, mas antes o impacto era negativo. Não havia apoio, o investimento não retornava. Hoje, vejo a importância de valorizar o artista que participa. Se o cachê dele é um valor “X”, eu pago. Não vejo razão para pagar menos a um artista LGBTQIA+ só porque o evento é para nossa comunidade. Os fornecedores são os mesmos de qualquer evento, o preço do som, da luz, não muda, e o artista tem que ser valorizado. Se ele cobra “X”, eu pago.“
PA: A festa movimenta a cidade. Quanto você acha que ela gera para a economia de Imperatriz?
FC: Eu não consigo definir um valor exato, porque essa economia vai além do evento. Quem vai à festa também compra no brechó, na loja, adquire ingressos ou produtos digitalmente, e até se prepara para estar no evento, com roupas compradas online. Tudo é pensado, as pessoas criam uma produção completa. Por isso, a economia é movimentada tanto dentro quanto fora do evento. O mais interessante é que, ao contrário de antes, hoje as pessoas vão para ser vistas, querem aparecer nas mídias do evento. Lembro da primeira vez que coloquei um fotógrafo no evento: era uma novidade e causou confusão. Postávamos fotos e vídeos, mas apagávamos logo em seguida, pois as pessoas pediam para não aparecer. Hoje, elas querem fazer parte do material promocional. Vejo que a festa tem uma legião de pessoas que se conectaram através dela, mudando a dinâmica da cidade. A Trópico criou uma cidade antes e depois dela, e isso gerou um movimento que poderia se expandir. Imperatriz, com mais de 200 mil habitantes, precisa de outras produtoras, pois o mercado é pequeno para uma cidade tão grande. Antigamente, achávamos que a festa deveria ter um estilo único, mas a comunidade é fragmentada, com diferentes gostos e necessidades. Há grupos que preferem outros estilos de festa, como o ballroom, e a comunidade LGBT também tem diversas camadas. A Trópico abriu caminho, mas ainda há demanda para outros eventos que atendam a essas segmentações. Precisamos de mais produções culturais para refletir nossa diversidade.
PA: Qual foi a festa que você mais gostou de fazer e por quê?
FC: A que eu mais gosto de fazer é a Macete, por eu ser preto. A Macete se tornou um movimento também por estar ligada à moda. Com a adesão do TikTok e das tendências de brasilidades nas redes sociais, os LGBT’s viram nela um espaço criativo para se expressar através da roupa.
PA: Tem a Horror Story, que é a festa de Halloween, e vejo muito essa expressão na moda. Certa vez, a cantora Kim Petras disse que o Halloween é o Natal dos gays (risos). Você concorda?
FC: Essas festas se tornaram marcas da Trópico. Na Horror Story, tivemos um problema em 2018, quando o evento foi interrompido devido a uma denúncia. Isso me fez refletir sobre como retomar a festa, e a ideia de reiniciar dentro do Halloween surgiu. O Halloween sempre foi nosso “Natal” e, com ele, surgia a liberdade para as pessoas se expressarem. Muitas que queriam se montar como drag queens, por exemplo, não tinham espaço para isso em outros eventos, mas no Halloween se sentiam à vontade para mostrar sua identidade. A festa foi crescendo e, hoje, a Horror Story é a marca da Trópico com maior movimentação financeira, sendo também a mais cara.
PA: Como a Trópico impactou a sua vida além da identificação com a comunidade LGBTQIAPN+?
FC: Eu acho que sem a Trópico, eu não seria o que sou hoje. Como te falei no começo, tudo o que aprendi sobre mim, meus preconceitos, foi dentro da Trópico. Lembro como eu era cru e como fui evoluindo. Se não fosse ela, não sei onde estaria, e lutei muito para ela chegar onde está. Eu sou uma pessoa fechada, mas me preservei assim para que acontecesse.
Hoje, a Trópico é rentável, mas antes o impacto era negativo. Não havia apoio, o investimento não retornava. Hoje, vejo a importância de valorizar o artista que participa. Se o cachê dele é um valor “X”, eu pago. Não vejo razão para pagar menos a um artista LGBTQIA+ só porque o evento é para nossa comunidade. Os fornecedores são os mesmos de qualquer evento, o preço do som, da luz, não muda, e o artista tem que ser valorizado. Se ele cobra “X”, eu pago.
Muitas pessoas na noite têm outras fontes de renda porque nem sempre os eventos são suficientes. Então, se um artista fala que seu preço é “X”, eu pago esse valor. Por que, nos eventos para o público hétero, há essa valorização e, para nós, não? As contas são as mesmas, e o faturamento também precisa ser.
PA: Quais são os planos futuros para uma próxima Trópico?
FC: Ano que vem será o aniversário de 8 anos. Vamos fazer uma festa bem bonita e quero envolver todas as pessoas que tiveram uma grande importância no evento. Ainda não temos uma data definida, embora o aniversário seja em setembro, mas a festa não será necessariamente em setembro.
Por: Rennan Oliveira