Antes de lançar seu novo livro de ficção, o escritor maranhense João Marcos já se destacava por mesclar lendas e histórias do interior do Maranhão em uma literatura que ele chama de gótica regionalista. Inspirado pelo imaginário popular do gênero gótico — com fantasmas, sentimentos mórbidos e castelos mal-assombrados —, João Marcos encontrou uma maneira de unir o terror sombrio ao regionalismo nordestino. Nesta entrevista ao Portal Assobiar, ele explica como essa combinação funciona em sua obra e reflete sobre a força do regionalismo na ficção contemporânea.
Curacanga é o mais novo livro de fantasia do escritor maranhense João Marcos, com lançamento marcado para o dia 6 de dezembro de 2024, às 19h, no Sindicato dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino de João Lisboa. A obra traz uma fusão intrigante entre o gótico e o regionalismo, explorando o terror através de lendas e do folclore do interior do Maranhão. Segundo o autor, a essência do gótico nordestino está na atmosfera que permeia a narrativa: “Dentro do livro, trago a atmosfera do lugar, o próprio lugar como um fator fantástico e relevante para aquela história. É um livro que apresenta elementos típicos do gótico, como casas antigas e lugares mal-assombrados, mas com uma pegada regionalista e a incorporação do folclore maranhense”, explica.
A trama se desenrola na fictícia Buriti Azedo, uma pequena cidade no interior do Maranhão. É 1958, e a construção da rodovia Belém-Brasília promete trazer progresso à região. Francisco Pereira, um jovem aspirante a jornalista, é enviado até a cidade após vencer um concurso de um renomado jornal paulista. Lá, ele precisa cobrir uma grande reportagem. Porém, a aparente tranquilidade da cidade é abalada quando fenômenos sobrenaturais começam a surgir após a misteriosa morte de Terezinha, a moradora mais antiga do lugar.
Para João Marcos, Curacanga é “uma viagem mágica pelos recantos mais obscuros de um Maranhão fantástico, pronto para ser descoberto”. O autor compartilhou suas inspirações, referências literárias e projetos futuros, consolidando-se como uma nova voz do regionalismo maranhense.
Confira a entrevista com João Marcos:
Portal Assobiar (PA): Como surgiu a ideia de criar Curacanga?
O Curacanga surgiu durante a escrita do livro-reportagem A Sombra da Gameleira, meu TCC de jornalismo. Na época, entrevistei muitas pessoas, visitei lugares e conheci histórias contadas por moradores mais velhos. Esse contato transformador com as narrativas da minha cidade, João Lisboa, no sul do Maranhão, despertou em mim a vontade de explorar as riquezas culturais e identitárias da região. A Sombra da Gameleira, por exemplo, se tornou o primeiro livro sobre a história local, funcionando como um registro histórico que reflete a identidade das pessoas ao meu redor.
A ideia para Curacanga começou a se formar em 2020, durante uma viagem missionária ao interior de Itinga, em um lugar chamado Vavalândia. Foi lá que conheci o senhor Geraldo, primo da minha avó, que me contou três histórias marcantes. Uma delas falava de um homem em João Lisboa que ninguém conseguia prender. Ele causava confusões e, mesmo amarrado, aparecia livre no dia seguinte, sem explicação aparente. Essa história ficou na minha cabeça, e eu pensei: “Isso daria um ótimo enredo para um livro de ficção”.
Depois de publicar A Sombra da Gameleira, comecei a aprofundar minha pesquisa. Encontrei uma manchete em um jornal antigo, incluído no livro Repressão e Resistência em Imperatriz, de Valdizar e Adalberto Franklin, que relatava o caso de um homem perdido na mata durante a construção da rodovia Belém-Brasília. Ele tinha apenas uma bala no revólver e planejava usá-la para se suicidar caso não fosse encontrado, até ser resgatado por indígenas. Esse fato me fez refletir sobre as inúmeras histórias não contadas que poderiam ter ocorrido ao longo da rodovia.
Foi a partir dessas experiências e pesquisas, combinadas com histórias orais e elementos regionais, que Curacanga tomou forma. A frase que me veio à mente resume bem essa mistura: “E se a própria magia daquele lugar atuasse contra as pessoas?”. Assim nasceu a obra, entrelaçando o fantástico e o cotidiano do Maranhão.
PA: Há algum outro livro que serviu de inspiração para a criação de Curacanga?
JM: Curiosamente, a maioria dos livros que inspiraram Curacanga são daqui da região. Um deles é Emoções Sentidas, do escritor Raimundo Miranda, publicado em 1986. É um livro que acabou se perdendo ao longo do tempo em Imperatriz, mas possui elementos de fantasia muito bons. Quando o li, foi como se uma luz se acendesse na minha mente. Ele tinha exatamente o tom que eu queria imprimir em Curacanga.
PA: Como você classificaria o gênero literário de Curacanga?
JM: Eu classificaria Curacanga como um livro de gótico nordestino ou gótico regionalista. O gênero gótico tem essa característica do insólito, da fantasia, e isso está muito presente na obra. O gótico nasce da fantasia e se sustenta pela atmosfera, e no livro eu exploro muito isso: o lugar em si é um elemento fantástico e relevante para a história. A obra inclui elementos clássicos do gótico, como casas antigas e lugares mal-assombrados, mas tudo com uma pegada regionalista e incorporando o folclore maranhense. Por exemplo, a rasga mortalha está presente tanto na narrativa quanto na capa do livro, mas eu a reconstruí, criando uma nova versão desse ser místico dentro da história.
Misturo o fantástico com o gótico regionalista, desafiando o preconceito que por muito tempo esteve associado ao regionalismo. Muitos na academia veem o regionalismo como algo menor, limitado ao seu contexto local. Eu, ao contrário, assumo com orgulho ser regionalista. Meu objetivo é trazer o que é nosso para mais perto de nós, apropriar-nos da nossa cultura.
Essa valorização está presente até no projeto gráfico do livro. As cores da capa remetem ao buriti, e a cidade fictícia da história, Buriti Azedo, reflete uma atmosfera tipicamente interiorana do Maranhão. Na contracapa, há a foto de uma casa real, localizada no povoado Bom Lugar, em João Lisboa. Essa casa, com seu estilo arquitetônico Art Déco, conecta-se à história, já que esse estilo se popularizou no Brasil durante a expansão do interior, especialmente na época da construção da rodovia Belém-Brasília, que marca o contexto do livro. Além disso, há uma fotografia de uma estrada que vai para esse povoado, que remete às vias abertas durante o ciclo do arroz nos anos 1960, época em que se passa a narrativa. Tudo foi pensado para refletir o vínculo entre história, cultura e localidade.
PA: Como a experiência de escrever Círculo de Fogo, seu primeiro livro publicado, contribuiu para a criação de Curacanga?
JM: Círculo de Fogo foi o primeiro livro que publiquei, mas não o primeiro que escrevi. Meu primeiro livro, que fiz aos 13 anos, abordava o tema do bullying e foi algo muito da época, sem pretensão de publicação. Já Círculo de Fogo foi um projeto pelo qual sonhei durante anos. Comecei a escrevê-lo em 2013, e ele se transformou em uma saga com três livros, todos já escritos, além de histórias paralelas e uma mitologia bem desenvolvida. Foi uma experiência que chamo de curso intensivo de escrita. Passei 10 anos da minha vida, dos 16 anos até 2020, construindo esse universo e aprendendo como fazê-lo funcionar de forma coesa. Esse processo me ajudou a me encontrar como escritor de ficção, entendendo a importância de planejar a direção da história e manter consistência.
Escrever Círculo de Fogo também abriu portas para outros projetos. Depois dele, escrevi dois livros infantojuvenis – um sobre arte e outro de terror –, além de ter criado outras histórias que ainda não publiquei. Esses anos de prática, leitura e pesquisa foram fundamentais para moldar o escritor que sou hoje.
Quando surgiu a oportunidade de escrever o livro-reportagem A Sombra da Gameleira, eu já me sentia preparado. Esse trabalho foi um desafio completamente novo: um texto ancorado na realidade, com grande responsabilidade social e histórica, pois lidava com a história da minha cidade. Essa experiência me conectou profundamente às minhas raízes e foi o ponto de partida para eu me assumir como um escritor regional fantástico, algo que não imaginava antes. Nos últimos dois anos, esse tem sido meu foco e propósito: valorizar nossa cultura, narrativas e folclore.
Reconheço a importância de fomentar narrativas locais. Hoje temos mais espaço e aceitação para falar sobre nossas origens, especialmente com iniciativas como editais descentralizados e o incentivo ao cinema e à literatura regional. Isso cria um terreno fértil para que mais pessoas explorem e valorizem essas histórias, contribuindo para o fortalecimento da nossa identidade cultural. Quero ser um incentivador dessa jornada.
PA: Por que você considera tão importante valorizar as narrativas regionais?
JM: Nós, como artistas – sejam dramaturgos, escritores ou outros –, temos a responsabilidade de ajudar a construir o imaginário de um lugar. Por exemplo, quando pensamos em Londres, logo vêm à mente produtos culturais como Doctor Who, Neil Gaiman ou Harry Potter, que têm uma forte conexão com a Inglaterra, especialmente Londres e Irlanda. É uma construção de identidade. Quando pensamos em Ilhéus, imediatamente lembramos de Jorge Amado. No futuro, quem ler os meus livros poderá dizer: “Olha, foi aqui que surgiu a inspiração, foi nesse lugar, nessa estrada, nessa casa ou rua que talvez nem exista mais”. Assim como O Cortiço é parte do imaginário do Rio de Janeiro, a arte tem o poder de criar essas associações, e isso é essencial para nós enquanto indivíduos e sociedade. Precisamos nos apropriar dessas narrativas, pois elas são fundamentais para nossa identidade.
PA: Você desenvolveu um projeto de distribuição de livros para escolas públicas, o que é um hábito extremamente positivo. Além de criar histórias, você arrecada livros e os doa para quem não tem acesso a eles. Pode nos contar mais sobre essa iniciativa?
JM: O projeto “Ler Transforma” é minha tentativa de incentivar a leitura, não para resolver completamente a questão da falta de acesso aos livros, mas para contribuir de alguma forma. Muitas vezes, as pessoas não leem porque simplesmente não têm acesso aos livros. A formação de leitores geralmente acontece nas primeiras fases da vida, entre 13 e 16 anos. É raro, mas não impossível, que alguém se torne leitor depois dos 25 ou 30 anos. No entanto, a maioria de nós que já lê começou cedo.
Eu sei que não vou chegar a uma escola e mudar tudo, mas acredito que estou plantando sementes. Já realizei ações em várias escolas do sul do Maranhão, que é o meu foco principal. Escolho cidades próximas porque eu mesmo cuido de tudo: arrecado os livros, organizo as visitas e vou até as escolas. Lá, faço palestras sobre a importância da leitura e distribuo os livros aos alunos presentes.
Os resultados têm sido muito positivos. Professores relatam que, após as visitas, os alunos passaram a ler mais e trocar livros entre si, e isso é extremamente gratificante. Este ano, por exemplo, visitamos escolas em Senador La Roque e Buritirana. Eu tinha planos de ir a Amarante, mas não consegui agendar. No próximo ano, espero incluir Porto Franco.
Também penso em expandir o projeto, talvez criando uma edição voltada para o público infantil ou até um clube do livro. Já fiz uma edição infantil uma vez, e foi uma experiência incrível. Recebo livros de várias faixas etárias e vejo muito potencial no projeto. Quero montar uma equipe voluntária para ajudar, porque atualmente ele é totalmente autofinanciado, não movimenta um centavo. É, acima de tudo, uma paixão e uma forma de expandir o impacto do que já faço como escritor.
PA: O que você está preparando para o lançamento do livro na sexta-feira, dia 06?
JM: Para o lançamento de Curacanga, eu quis criar algo que fosse além de simplesmente autografar livros. Ser artista local já é um desafio, então acredito que é necessário oferecer uma experiência mais completa e interativa. Quando lancei A Sombra da Gameleira, fiz uma exposição com fotografias e objetos antigos da cidade de João Lisboa, incluindo fitas cassete tocando músicas da época. Foi incrível ver as pessoas caminhando pelo espaço, tirando fotos, se reconhecendo nas imagens e se conectando com o contexto da obra.
Com Curacanga, quis expandir ainda mais essa ideia. Fiz um curso de artes plásticas no Centro Cultural Tatajuba com o Ton Neves e aprendi a pintar. Assim, para o lançamento, preparei uma exposição imersiva chamada A Caminho de Buriti Azedo, que é o nome da cidade fictícia do livro. São oito telas que eu mesmo pintei, contando visualmente a história de Curacanga. Meu objetivo é que as pessoas se envolvam de diferentes maneiras com a obra, não apenas lendo, mas também experimentando as emoções através das artes plásticas. Quero que o evento seja uma celebração cultural completa.
PA: Falando em arte, é perceptível o cuidado que você tem com o material publicitário para o lançamento dos seus livros. Você produz conteúdos audiovisuais incríveis para as redes sociais, com edições de qualidade e histórias muito bem construídas. Como surgiu essa ideia de usar as redes sociais como ferramenta para divulgar seus projetos?
JM: Eu gosto muito de criar esses vídeos; acho que são uma ferramenta poderosa. Para nós, artistas independentes, é uma forma de nos virar para sermos vistos. Fico feliz quando as pessoas assistem e interagem, mas, ao mesmo tempo, é frustrante porque os posts nas redes sociais têm uma vida útil muito curta. O algoritmo é extremamente injusto com criadores independentes.
Por exemplo, fiz um vídeo de um minuto sobre a exposição. Comecei a gravar em janeiro e, no total, tenho uma hora de material filmado. Mas não faz sentido publicar uma hora de conteúdo no Instagram ou no YouTube. Preciso condensar tudo em um minuto, de forma objetiva e clara, para atender à dinâmica das redes sociais. Depois, ainda escrevo um texto para complementar e explicar o trabalho. Mesmo assim, a postagem só teve alcance por 18 horas. Além disso, no meu caso, o Facebook derrubou minha conta de anúncios, então nem consigo impulsionar as publicações. Isso é um desafio constante.
PA: Sabe o motivo de ter caído a sua conta ?
JM: Eu fiz um anúncio no Facebook, mas o débito não caiu no meu cartão no dia, e só um mês depois o valor foi debitado. Na hora, eu achei que fosse golpe e bloqueei o cartão. Quando fui analisar com calma, percebi que o débito era referente a uma conta do Facebook. O pagamento não foi processado na hora, então o cartão foi bloqueado e minha conta de anúncios foi suspensa. Eu recorri, fiz o pagamento correto e o débito foi feito, mas mesmo assim, não consegui reativar minha conta. Já faz um ano que está inativa, e agora nem consigo impulsionar conteúdo. Fica difícil trabalhar assim, porque a gente depende das redes sociais, mas também fica preso a esses problemas. Acaba sendo quase no boca a boca, com muito esforço. As redes sociais tomam muito tempo, mas é algo que precisamos manter, mesmo com essas dificuldades.
PA: Palavras finais?
JM: Acho importante, além de tudo isso, destacar um manifesto que eu escrevi sobre a importância da literatura regional. Esse manifesto, que está disponível na internet gratuitamente, trata da arte do esquecimento. Eu li esse texto pela primeira vez na primeira mostra de arte e cultura da Uemasul, em junho. No manifesto, falo sobre como muitas vezes nos esquecemos de nós mesmos, de nossas raízes e da nossa cultura. Muitas vezes, buscamos referências de fora, quando poderíamos estar explorando o que é nosso. Esse pensamento foi um dos motores para a criação do livro Curacanga, que será lançado no dia 6 de dezembro, no Sindicato dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino de João Lisboa. Espero todo mundo lá!
Por Rennan Oliveira