Ruaní: Afro-brasileira, Cantora e Compositora
Ruaní. Ilustração: Idayane Ferreira

“Boa Reza”, música de Vanessa da Mata, se parece com a trajetória de Ruane, ou melhor, Ruaní – seu nome artístico e de batismo depois de suas descobertas ancestrais nos últimos cinco anos. 

Uma mulher preta, afro-brasileira, cantora, compositora, professora, mestre (que tem mestrado) e daimista (religião de matriz africana e indígena Santo Daime). Em suas composições promove toda a sua afrodescência e “todo um misticismo”, como ela mesma denominou. Não se rendeu aos preconceitos contra as religiões de matrizes africanas, que vemos a todo momento. 

Ruaní precisou de uma “Boa reza” para ir na contramão dos gêneros musicais de Imperatriz (MA), onde predomina o sertanejo. Por isso, suas motivações e vontade de permanecer no estilo se alimentam com a ida a outras regiões e nos redutos comunitários como Fórum das Mulheres ou grupo de Mulheres de Padre Josimo e outras instituições, que veem no seu trabalho um verdadeiro alento. 

“Aqui é uma região um pouco complicada para artistas que trabalham com a espiritualidade de matrizes africanas. Porque eles [a maioria da população de Imperatriz] entendem MPB  (Música Popular Brasileira)… não digo rotulada,  mas de fato é o Sertanejo. Pelo menos nessa região é muito complicado. A MPB em si já é complicada e uma MPB que contempla elementos de matrizes africanas, aí é mais complicado ainda porque tem muito misticismo, muito medo e muito preconceito.”

Ruaní conta que desistiu de cantar nos bares de Imperatriz devido aos constrangimentos que os donos dos estabelecimentos demonstravam em relação ao seu estilo musical. “Quando eu fui procurar barzinhos pra me apresentar aqui, eu nem trouxe esses elementos [de matrizes africanas na montagem de repertório]; eu evitava de trazer essas músicas que têm esses elementos da Umbanda, porque eu já sabia que não seria muito bem aceito.”

Em algumas raras apresentações em bares de outros lugares, Ruaní cantou Samba. Historicamente, um gênero com elementos da Umbanda, Candomblé e outras  religiões de matrizes africanas é apreciado, principalmente, em comunidades urbanas  do Rio de Janeiro.

 “As pessoas nem percebem que você está cantando elementos da Umbanda, mas se elas perceberem, elas não vão aceitar. Então assim, é uma ignorância mesmo. O preconceito vem dessa ignorância.”

Segundo ela, muitas das palavras e ditados que formam as composições do gênero Samba, estão claramente reverenciando orixás, voduns/odus (divindades de religiões de povos africanos). “Quando eu comecei a cantar Samba aqui eu tive uma receptividade melhor, mas mesmo assim, a cena musical de Imperatriz é muito prejudicada pela não união dos próprios artistas.”

Ao longo da conversa, Ruaní fica mais à vontade e afirma que os artistas são seres puramente políticos. Por isso aproveita para queixar-se da ausência de um sindicato ou secretaria que apoie os artistas do município, pois em geral essas instituições ficam localizadas na capital São Luís. “Aí junta com o preconceito e vira uma sopa perfeita para intolerância religiosa mesmo.”

Conhece aquele ditado “reclama mas com razão!”? O preconceito e a ausência de políticas públicas e de sindicatos e secretaria que defendam os direitos dos e das artistas podem ser vistos em estatísticas:  

O Brasil é considerado um país laico (isto é, o Estado funciona separado da religião), entretanto, em 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) recebeu 586 denúncias de intolerância religiosa – um aumento de 141% em relação ao ano anterior, mesmo em um contexto de pandemia, segundo o site ‘Observatório da Democracia’ 

O Observatório aponta ainda que a divulgação desses números no governo Bolsonaro acabou com a possibilidade de identificação de quais religiões foram alvo desse tipo de ataque, mas não é difícil inferir que os adeptos das religiões de matrizes africanas foram as maiores vítimas desses ataques, como aponta o histórico (anos anteriores) dos números nessa área. 

Ruaní chegou a se camuflar para não sofrer tanto preconceito. “Só que eu cansei. Hoje sou o que eu sou e eu não vou me “prostituir” a ponto de não mostrar a minha própria arte ou o que eu sou, pra poder ganhar dinheiro ou coisa do tipo. Claro, entendo que todo artista precisa pagar suas contas, mas como eu tenho outro meio de renda [professora de História em escolas de Imperatriz], preferi não me submeter a isso. Eu pude ter essa escolha. Tem artista que, infelizmente, não tem, aí precisam se adaptar mesmo.” 

A artista esclarece que canta desde que “se entende por gente” e seu reduto em Imperatriz são sempre os eventos pontuais de instituições ou sindicatos que sabe que vão lhe receber com receptividade e  irão entender seu gênero musical. “Eu não sei definir em anos o tempo que eu canto profissionalmente. Mas eu sempre cantei. Mais ou menos uns cinco anos de forma profissional. Há uns cinco [anos] estou investindo mesmo nisso aqui.”

Motivações

A cantora expressa suas motivações e as saídas encontradas para conseguir expressar sua arte, pois suas escolhas são inspiradas e guiadas pelos seus (ou por) orixás (ancestrais africanos que se tornaram divindades e representam elementos da natureza). Segundo ela, o primeiro ponto que a motiva é o fato de se reconhecer como artista e seu propósito de vida. Ao longo desse tempo na religião Santo Daime conseguiu ficar firme em suas escolhas musicais e criar seu repertório. 

“Se aqui não está tendo abertura, você procura outras regiões. Inclusive, eu cheguei ontem [19 de março] de São Paulo. E lá, eu consegui ter uma abertura maior. Porque lá são várias misturas, né?! Tem lugar pra todo mundo. É uma cidade que as pessoas intitulam como uma cidade hostil, mas ao mesmo tempo é uma cidade que recebe muitas etnias, recebe muita gente diferente porque aqui eu sou diferente. Aqui eu não me adapto aos rótulos que tem aqui”. 

Ir à São Paulo várias vezes ao ano… é assim que Ruaní se fortalece enquanto mulher preta afrodescendente e tantas outras formas de ser que ela descreveu na nossa conversa. Recebe apoios de lá. Poucos do lado daqui. Mas se motiva mesmo indo na contramão dos gêneros musicais apreciados na região sul maranhense. 

“Quando eu chego aqui eu me torno a professora Ruane. Mas também eu tenho as redes sociais, e eu tô me voltando bem para as redes sociais. Nela você consegue atrair pessoas daqui que se camuflam para não sofrer tanto preconceito religioso, para não receber tanto preconceito pelo que você é… e essas alternativas têm me satisfeito, apesar de eu querer mais. Mas eu encontrei um reduto que é as redes sociais e ir para outras regiões. Mostrar o meu trabalho em outras regiões. Porque realmente aqui em Imperatriz eu já desisti.” 

Memória afetiva  

As motivações vêm dos momentos vividos na infância ao lado da família. Seus pais de esquerda e participantes das Comunidades Eclesiais de Base (CEBI) convidavam amigos e amigas para uma roda de violão na sua casa e MPB e músicas autorais embalavam os fins de semana. Mas a memória afetiva principal aconteceu quando ela tinha menos de 10 anos indo com a família de carro para Amarante (município localizado a 81.95km de Imperatriz). 

Durante a viagem seu pai colocou para tocar o CD do Luiz Gonzaga, um CD vermelho, que por coincidência (ou não) o álbum se chama ‘Eu e meu pai’. Nessa viagem, escutaram o CD umas cinco vezes e ela se recorda de ter achado as músicas muito lindas com diálogos engraçados. 

“Porque era um CD que ele vai contando as histórias: Na parte do Luiz respeita Januário ele conta que chegou no pai dele e no tio dele e chegou de madrugada…pedindo água e isso me tocou muito, achei bem engraçado. Foi uma viagem muito feliz dentro do carro. Eu tenho essas memórias afetivas dos meus pais ouvirem boas músicas. Minha mãe ouvia muitas músicas internacionais tipo Beatles, Elton John e eles foram minhas primeiras referências musicais. Fui criada dessa forma.”

Referências 

Enquanto professora, Ruaní leva para seus alunos e alunas referências de leituras de escritoras pretas e explica sobre os contextos geográficos e foca sobretudo no continente africano, ressaltando a cultura popular. Em termos musicais, tem Milton Nascimento, Vanessa da Mata, Dessa Ferreira (sua amiga atualmente), Lilia Diniz (artista e poetisa), Nina Simone, Elis Regina, Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França, algumas/alguns que alimentam o seu gênero musical. 

Inspiradas nesses artistas, aos 33 anos ela resolveu criar coragem também para compor e gravar suas composições. “Tenho trabalhado nesse projeto de músicas autorais. São músicas que vieram da minha ancestralidade. Hoje sou muito grata pela aliança que eles têm me proporcionado, pois o propósito do artista é curar por meio da arte. Hoje o meu maior propósito é colocar minha arte disponível para as pessoas se curarem, poderem se levantar, terem coragem…porque é o que a minha arte faz comigo.” 

Religião de Matriz Africana Santo Daime 

Santo Daime é uma religião de Matriz Africana a qual a Ruaní frequenta. Daimista são as pessoas que frequentam a religião do Santo Daime, essa doutrina espiritual foi fundada na década de 1920, em Brasiléia (AC), pelo seringueiro Raimundo Irineu Serra.

Preto retinto, os adeptos da religião o chamam de Mestre Irineu, um maranhense que teve seu primeiro contato com a ayahuasca (bebida usada nos rituais do Santo Daime). A bebida lhe trouxe a visão de uma mulher de nome Clara. A história conta ainda, que Clara é Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Santo. Em Imperatriz, a comunidade Daime é localizada na casa Fraternidade Jardim de Salomão.

“Há 3 anos eu sou Daimista – faço parte da comunidade de Imperatriz chamado Santo Daime – e essa comunidade ela me mostrou muito sobre o meu propósito de vida. Desde que eu entrei nessa comunidade, eu venho trabalhando minha espiritualidade e o autoconhecimento e tive coragem pra poder me assumir como cantora e como compositora porque antes eu não compunha.”

Nesse tempo ela tem descoberto o potencial de suas canções e sente que não são exatamente suas músicas e que ela não faz nada sozinha. Sente que recebe muitas intuições, muitas comunicações, “na verdade, intuições dos guias espirituais para poder me inspirar… Na comunidade de Daime também na Umbanda trabalho a minha espiritualidade e autoconhecimento e comecei a compor, porque antes eu não era compositora, me tornei compositora. E eu tenho ficado muito atenta sobre o meu propósito, inclusive, político.”

Daniela Souza
Daniela Souza

Jornalista especializada em Assessoria de Comunicação Organizacional e Institucional. Já vivenciou experiências profissionais nas áreas de publicidade e propaganda, produção de documentários, radiojornalismo, assessoria política, repórter do site jornal Correio de Imperatriz e social mídia. Boa parte de suas experiências profissionais foram em assessorias de comunicação institucional de ONGs, com ativismo social voltado para a defesa de direitos humanos, justiça socioambiental e expansão da agroecologia na região do bico do Papagaio; esses trabalhos ocorreram nas cidades de Açailândia, Imperatriz (MA) e Augustinópolis (TO).

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