“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.” (Nise da Silveira)
Faz alguns anos ganhei de presente de uma amiga querida o livro Holocausto Brasileiro, da jornalista e escritora Daniela Arbex. Lembro que fiquei impactada com a leitura, tanto por ser o relato pujante de um capítulo pouco conhecido da história do nosso país, quanto pelo fato de ser ainda tão recente. No livro-reportagem, lançado em 2013, Arbex denuncia os horrores ocorrido no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, mas conhecido como Colônia. Localizado em Minas Gerais, o centro era o maior manicômio do Brasil e diariamente recebia pacientes com diagnóstico de doenças mentais, além de prostitutas, homossexuais, mendigos, alcoólatras, mães solteiras e toda gente que era considerada fora dos padrões sociais. Lá, durante seu funcionamento – de 1903 a 1996 – mais de 60 mil pessoas foram maltratadas e mortas com o consentimento e descaso do Estado, funcionários, médicos e sociedade. Outras tantas vidas foram marcadas de maneira irreversível para sempre. De acordo com reportagem da EBC, em 2015 – mesmo com o fim do manicômio – ainda havia 171 pacientes em regime de internação de longa permanência e “[…] eles continuaram internados porque não tinham vínculo familiar nem para onde ir”.
Mais de um século antes do livro de Daniela Arbex, outra jornalista fez um relato contundente sobre os maus tratos a pacientes em um hospício, dessa vez nos Estados Unidos: em 1887, Nellie Bly – pseudônimo da repórter norte-americana Elizabeth Cochran Seaman – se fingiu de louca e passou 10 dias internada no Blackwell’s Island, hospital psiquiátrico localizado em Nova York (EUA) para escrever uma reportagem – que posteriormente resultou no livro Dez dias no Manicômio.
É inegável que os estigmas relacionados à saúde mental existem até os dias atuais. Mesmo que nossa sociedade tenha avançado na ciência e na cultura, doenças e transtornos mentais ainda são considerados tabu. Por outro lado, movimentos antimanicomiais que buscam tratamentos humanizados e maior exercício cidadão dos pacientes contribuíram para a reforma psiquiátrica no país – possível também graças a trabalhos pioneiros como o da médica psiquiátrica Nise da Silveira.
Nordestina, nascida em 15 de fevereiro de 1905, em Maceió, no estado de Alagoas, Nise da Silveira era a única mulher em uma turma de mais de 150 estudantes que se formou na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926. Ela ingressou no curso aos 16 anos de idade e está entre as primeiras mulheres no Brasil a exercer a profissão.
Ao longo da sua vida dedicou-se a psiquiatria e sempre foi contra as formas agressivas de tratamentos destinados a pacientes psiquiátricos de sua época, tais como o confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoque, insulinoterapia e lobotomia. Revolucionou o campo da saúde mental ao introduzir, em nosso país, a terapia ocupacional baseada em expressões artísticas e no uso terapêutico de animais na interação com pacientes.
Nise da Silveira é referência mundial na luta antimanicomial e na defesa do tratamento humanizado para pacientes com transtornos psíquicos. Em 2022 teve seu nome incluso no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria que homenageia personalidades consideradas fundamentais para a construção da história brasileira. A homenagem à psiquiatra chegou a ser vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) mas foi confirmada pelo Congresso.
Casada com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira (1905-1986), que foi seu colega de faculdade, Nise muda-se para o Rio de Janeiro após a morte dos seus pais. Depois de especializa-se em Psiquiatria, na década de 1930, passa a atuar no antigo Hospício Nacional de Alienados. Devido ao seu envolvimento político com o comunismo e organizações de esquerda como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), é presa pelo governo de Getúlio Vargas, em fevereiro de 1936. Durante os 18 meses em que esteve na prisão, dividiu cela com a militante alemã Olga Benário e se aproximou do escritor alagoano Graciliano Ramos também prisioneiro e que faz relatos sobre ela em seu livro Memórias do Cárcere.
Em alguns dos textos e relatos que li sobre a Nise constava a informação de que ela havia fugido da prisão, mas nenhum descrevia como ela realizara esse feito, o que me deixou intrigada. O certo é que depois de sair da cadeia ela se refugiou na Bahia com seu marido e seus amados gatos. Foi julgada, absolvida e anistiada pelo governo e durante esse período em que esteve reclusa entrou em contato com o pensamento do filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) e sua dinâmica dos afetos, o que reverberou em sua forma de praticar a psiquiatria.
Nise ficou afastada do serviço público de 1936 a 1944, quando inicia um trabalho pioneiro no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro: passa a estimular seus pacientes a se expressarem por meio das artes plásticas como a pintura e a escultura. Neste local ela funda, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional – ao qual dirigiu por 28 anos e que atualmente leva seu nome.
Criou em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa que reúne obras produzidas nos ateliês de atividades expressivas. Foi aluna de Jung, renomado psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica e com quem manteve uma proveitosa troca de correspondências – sendo responsável pela introdução dos estudos junguianos no Brasil e pela formação, em 1955, do Grupo de Estudos C.G. Jung. Também criou a Casa das Palmeiras, uma clínica destinada ao tratamento de egressos de instituições psiquiátricas.
Rebelde e desafiadora, Nise da Silveira rompeu com o tratamento desumanizado que era ofertado aos internos de hospitais psiquiátricos. Rejeitava o termo paciente e determinava o uso de clientes reforçando a relação de troca, mas preferia mesmo se referir a eles pelos nomes. Recebeu diversas condecorações e prêmios e inspirou, por meio do seu trabalho, a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas no Brasil e no exterior. Faleceu em 30 de outubro de 1999, aos 94 anos de idade.
Depois de muito ler sobre a Nise, resolvi assistir alguns dos vídeos ao seu respeito disponíveis no Youtube. Entre eles encontrei o Nise da Silveira – Posfácio: Imagens do Inconsciente, um documentário de Leon Hirszman que traz uma entrevista com ela. No vídeo, gravado em 1986, verificamos uma senhora de cabelos brancos com óculos de grossas lentes. Seu aspecto físico tem um quê de passarinho e algo na forma com ela fala me lembram os poemas do Manoel de Barros: é basicamente a lucidez e sabedoria que só existem nas coisas loucas e na poesia.
Extra:
Documentário do Canal LifeTime, lançando em 2019, “Fuga do Hospício: A história de Nellie Bly”. Disponível no Youtube.
Documentário Em Nome da Razão, de Helvécio Ratton. Filmado no Manicômio de Barbacena (MG), o filme revela o cotidiano dos pacientes, desencadeando o início da desativação do Colônia em 1980. Disponível no Youtube.
O livro da Daniela Arbex deu origem ao Holocausto Brasileiro (2016), documentário adaptado da obra e a série Colônia (2021).
Em 1996 foi inaugurado em Barbacena (MG) o Museu da Loucura, que funciona no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). Seu acervo é composto por textos, fotografias, vídeos, documentos, equipamentos, objetos e instrumentação cirúrgica que relatam a história do tratamento de pacientes com transtornos mentais.
Filme “Nise: O coração da Loucura”, cinebiografia sobre Nise da Silveira. Disponível na plataforma HBO Max, você encontra também no Youtube.
Vídeo “Nise da Silveira – A emoção de lidar – A revolução pelo afeto – montagem na beira do abismo”. Disponível no Youtube.
Nise tem ao menos uma dúzia de livros publicados: Jung: vida e obra (1968), Imagens do inconsciente (1981), Casa das Palmeiras. A emoção de lidar. Uma experiência em psiquiatria (1986), O mundo das imagens (1992), Nise da Silveira (1992), Cartas a Spinoza (1995), Gatos – A Emoção de Lidar (1998).
A exposição Nise da Silveira: A Revolução pelo Afeto, que homenageia a psiquiatra está aberta ao público até 26 de março de 2023, no Sesc Belenzinho, em São Paulo (SP).
Em 1987, um encontro reuniu vários grupos favoráveis a reforma psiquiátrica e ao fim dos manicômios em nosso país, por isso a data de 18 de maio tornou-se o dia de Luta Antimanicomial.
Em 1992, Nise da Silveira cedeu uma entrevista a Dulce Pandolfi relembrando sua atuação no PCB. Disponível em texto aqui.