Uns dias atrás, houve uma discussão acalorada no Twitter sobre como se estuda para concurso e algumas pessoas falaram que de nada adianta “estudar fofo”, pois estariam fadadas a não serem aprovadas. Sabemos que passar em um concurso público não é nada fácil, pois exige uma rotina de estudos, disciplina e abnegação enormes do concurseiro, mas o “estudar fofo” me pegou.
Passei muito tempo lendo a postagem de quem era a favor de um estudo mais regrado e que ocupava muitas horas do dia da pessoa e também dos que defendiam um estudo menos aprisionado, que o estudante poderia se dar a alguns luxos, como tirar algumas horas para se divertir.
O que seria “estudar fofo”? Será que é estudar pouco? Intervalar o estudo com outras atividades? Estudar sem foco e sem disciplina? Estudar sem levar em conta o edital? Ir construindo o conhecimento aos poucos? Como o Twitter é uma terra em que ninguém se entende, saí pescando aqui e ali e percebi que tem dois pontos: estudar sem foco no tempo que dispõe e dedicar poucas horas aos estudos.
Nestas duas vertentes, temos várias possibilidades de análise, mas vou me ater ao que ficou em meus pensamentos. Por que será que você estuda sem foco? Será que é porque não quer passar no concurso? E quem não tem tempo para se dedicar muito, desiste ou insiste? O ato de estudar envolve muitas questões, inclusive saber lidar com sua frustação e com a possibilidade de ter sucesso, então o modo que se estuda é bastante subjetivo. Não me detive às questões subjetivas, mas às modalidades de se estudar de um modo mais amplo.
“Estudar fofo” ou estudar muito não é sinônimo de aprovação, pois passar em um concurso exige disciplina e foco. Lembro do meu curto processo de concurseira. Estava me formando em engenharia civil, não havia perspectiva de emprego e a vida exigia que eu trabalhasse, afinal eu já era uma adulta com um canudo embaixo do braço. Estávamos numa época de recessão econômica, não havia muitas possibilidades de trabalhar na área da engenharia, então me sobravam poucas alternativas: dar aula ou estudar para concurso. Escolhi a segunda opção e um mundo novo se descortinou para mim: conheci pessoas que literalmente viviam para serem aprovadas num concurso público, contudo havia também aquelas que já eram concursadas, mas queriam passar num concurso melhor.
Eram basicamente homens adultos e brancos que podiam passar horas na biblioteca estudando hard e todos foram aprovados. Poucos eram os casados e estudavam durante a noite e nos finais de semana. Eu e Cláudia éramos as únicas mulheres deste grupo. Época boa que só se falava em proventos, leis, férias, melhores concursos, como se estudar, como conseguir material de estudo, entre outras coisas.
Eu lembro que minha irmã Léa usava uma expressão que me dava ânimo para continuar estudando coisas tão fora do meu cotidiano: ela falava que precisávamos fazer parte da PEA, população economicamente ativa, e estas siglas me guiaram para um mundo inteiramente desconhecido: o mundo do “estudar fofo” e “estudar hard”.
Passei num concurso federal em menos de quatro meses de estudo, então não tenho muita prática do que é estudar tão hard como muitos estudam, mas uma coisa eu percebi desde aquela época: ter tempo para estudar é de um privilégio gigante. Quem pode se dar ao luxo de estudar muitas horas por dia? Quem tem condição de abrir mão de trabalhar, fazer as atividades domésticas, comprar material e cursos e decidir não se divertir? Nem é preciso pensar muito. E olhe que eu nem pensava no que significava ter uma família e filhos.
Esses dias saiu a lista dos aprovados no concurso do órgão que eu trabalho e uma de minhas atribuições é cadastrá-los em sistemas utilizados no trabalho e me saltou aos olhos a idade dos aprovados: a esmagadora maioria são bem novinhos. Lembrei de meu privilégio na mesma hora: podia me dedicar aos estudos porque era sustentada por um trabalho de meio turno e dispunha de muitas horas inteiramente para desfrutar como eu bem queria.
Hoje em dia, quando eu penso no tempo precioso que eu disponho para “perder” no Twitter vendo essa treta do “estudar fofo”, penso em quantas pessoas passam o tempo de almoço ou de condução estudando o quão hard elas podem. Há também aquelas que não podem sequer ponderar a possibilidade de estudar para um concurso, pois a mão invisível do mercado aperta a sua existência.
Quem já foi aprovado num concurso já fez o teste do pescoço para verificar quantos negros, mães e pessoas mais velhas são aprovados? Será que é possível estudar hard em qualquer situação ou será que até a possibilidade de passar num concurso público bordeja um recorte social e de raça? Parece que o Twitter já tem esta resposta. Será que traz um retrato fiel da realidade?
Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.