“Vendendo a alma no jornal”

Estou encerrando “A descoberta do mundo”, da Clarice Lispector, que reúne em ordem cronológica crônicas e textos que ela escreveu para o Jornal do Brasil (JB) entre agosto de 1967 e dezembro de 1973. Li em concomitante com outros livros e, lá se vão mais de um mês, aproveitando a miúde suas mais de 600 páginas. Brinco que este é “um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”, parafraseando um trecho do conto “Felicidade Clandestina” da autora.

Depois de já ter lido praticamente todos os livros do box especial da Clarice, é muito interessante identificar textos, contos e trechos de outras publicações na sua coluna semanal, que ela publicava sempre aos sábados. Além de notar sua resistência e receio em soar pessoal demais escrevendo crônicas para jornal. “[…] continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. […] fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma”.

Outro livro que li recentemente e que também era um compilado de textos publicados em jornal foi “A vaca e o hipogrifo”, do Mario Quintana. Editado pela primeira vez em 1977, a obra reúne crônicas, poemas, anotações, anedotas e frases que Quintana escreveu ao longo de uma década no suplemento literário Correio do Povo, de Porto Alegre.

Nestes textos para jornal, o escritor é espirituoso, sarcástico, preciso e espontâneo, assim como muitas vezes “vejo” a Clarice sendo nos textos da sua coluna no JB. Os dois – mas principalmente o Mario – conseguem sintetizar tanta reflexão em uma frase, e isso é realmente espantoso e prazeroso de se ler.

“Há ilusões perdidas, mas tão lindas que a gente as vê partir como balõezinhos de cor que nos escapam das mãos e desaparecem no céu…”, escreve Quintana, em dado momento de “A vaca e o hipogrifo”, e eu consigo visualizar o balão colorido, bonito e desejado escapulindo das minhas mãos desajeitadas. Mais uma ilusão perdida. Já Clarice: “[…] muita coisa inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar de um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer.”

Lendo os textos do Quintana e da Clarice para jornais, tive muitas vezes a sensação de conversar “olho no olho” com eles, uma impressão intima e direta. Senti certa inveja dos leitores da coluna da Clarice: ela recebia muitas cartas comentando os textos e, às vezes, respondia na própria crônica semanal. Clarice, que tinha medo de soar pessoal demais, vendendo a alma no jornal e escrevendo por dinheiro, sempre trazia sua face mais humana. É essa humanidade e pessoalidade que nos fazem sentir como se fôssemos próximos a ela. Quanto a Quintana, seus textos escritos entre os anos 60 e 70 são surpreendentemente atuais; tive que me certificar várias vezes de que não tinham sido escritos hoje em um suplemento de algum jornal. 

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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