Temperando palavras

A coluna de hoje é uma colaboração com Heider de Assis, pedagogo, especialista em educação inclusiva. Ele é um leitor voraz e vê na literatura “uma possibilidade de cura para um mundo que insistentemente tenta me engolir”. 

Heider de Assis – Dos livros que devorei, muitos carregavam em seu arcabouço uma infinidade de pratos que me teletransportaram para diversos territórios ainda não explorados. Minha percepção gastronômica literária foi iluminada por escritoras e escritores como Cristiane Lisbôa, Anthony Capella, Chimamanda Ngozi Adichie, Isabel Allende e Jhumpa Lahiri. Entrar em contato com os livros desses escritores permite ao leitor acessar a mais profunda memória gustativa, afinal uma boa comida tem a função de aguçar nossas emoções, um prato harmonioso estimula os sentidos, assim como as cores, a textura, os ingredientes que transmitem o mais puro prazer ao nosso paladar. Os escritores supracitados foram grandes causadores dessa epifania de sabores indeléveis.

Hoje pela manhã estive a pensar na culinária indiana que alimentou minha alma durante semanas. Ao ler O xará da autora Jhumpa Lahiri, no cardápio da história a personagem Ashima Ganguli mantém a tradição indiana em sua cozinha. O livro levanta questões como a imigração e a preservação das tradições. E nesse sentido a matriarca dos Ganguli nos presenteia com pratos como Curry de cordeiro, Luchi, Payesh, byriani ou Sandesh (uma espécie de queijo caseiro indiano recheado). O livro ainda que pungente em seu decorrer nos permite essa explosão de sabores quiméricos, o aroma das especiarias perpassa por nosso imaginário ativando o desejo de experimentar pratos tão sofisticados, que vão além dos ingredientes às propriedades terapêuticas facilitadoras da digestão. A Índia se tornou um capítulo bem saboroso na minha bagagem literária.

Um salto geográfico me direcionou para Nigéria, o aroma do hibisco roxo de Chimamanda Ngozi Adichie embala uma história sobre fanatismo e tirania sem deixar a cozinha nigeriana sair ilesa do enredo. Arroz de coco, sopa de egusi; utazi; onugbu ou de curry, fufu, okpa, ube, moi-moi, arroz Jollof, ngwo-ngwo são alguns dos pratos preparados pela empregada da família Achike e por Tia Ifeoma, tudo isso regado a suco de caju. A personagem central, Kambile Achike se deliciava fazendo bolinhas de fufu com os dedos e molhando-as na sopa acompanhada de peixe. Por tanto tempo sonhei com as delícias da Nigéria.

Na Itália de Anthony Capella acompanhamos as muitas formas de sedução. O Alimento do Amor é um livro de dar água na boca. A jovem Laura Patterson, vai para Itália estudar História da Arte. Ao passo que se encontra apaixonada pelos encantos italianos, bem como, a boa comida elaborada por Tomasso, um homem que a faz acreditar ser “chef” de um famoso restaurante e passa a tentar ganhá-la com suas invenções gastronômicas. Esse livro mágico, com receitas visuais como: flores de abobrinha fritas, pimentões recheados com coelho, spaghetti aio e oio, abbachio alla cacciatiore, monte bianco (sobremesa sazonal do Norte) e tagliatelle com ragù bolognese tem grande chance de te fazer querer degustar todos os pratos criados com bastante carinho pelo real chef de cozinha Bruno, amigo de Tomasso, que entra na empreitada para ajudar o amigo a ganhar o coração da bela Laura. As descrições dos pratos são altamente visuais, não dá para ler com fome.

Principalmente quando o alimento vem do amor. Comer com os olhos abre o apetite e é nesse viés que acompanhamos as divagações de Isabel Allende em Afrodite – Contos, receitas e outros afrodisíacos.

“A comida também entra pelos olhos. O frescor dos ingredientes naturais deveria ser suficiente, mas a incansável inventiva cozinha humana, mistura transforma e decora os alimentos com a mesma paixão utilizada no arranjo pessoal. ” Pág. 60

Um livro bastante suculento com passagem de ida para a gastronomia mundial em busca dos aperitivos que mexem com a libido humana. Tudo regado a vinagre balsâmico e o mais puro azeite de oliva. O livro tem uma linha temporal bastante interessante, por vezes nos esbarramos em diversas figuras históricas e seus comportamentos alimentícios. Outro ponto pra Allende fica por conta das seções de alimentos que abrangem as incontáveis especiarias e um cardápio elaboradíssimo de frutos do mar (mexilhões, abalone, ouriços e muitos crustáceos). “Nos pecados da carne” somos apresentados a animais de caça (cervo, javalis, lebres etc.).

Aos amantes do chocolate vale lembrar que ele não fica esquecido no cardápio literário da autora. Além das divagações, Allende criou um espaço vasto com receitas a serem executadas por mentes astuciosas, cada receita mais apetitosa que a outra e com grande chance de provocar várias sensações por conta do seu aporte afrodisíaco.

“Assim como o aroma do corpo é excitante, também o é o da comida fresca e bem preparada. Os perfumes da boa cozinha não só nos fazem salivar, como também nos fazem palpitar de um desejo que, se não é erótico, é muito parecido. ”

No Brasil, país tropical e tão diversificado em sabores me esbarrei com a escritora Cristiane Lisbôa com seu “Papel manteiga para embrulhar segredos – Cartas culinárias. ” Um livro para alegrar a mesa e o esquentar o coração, em capítulos curtos a personagem Antônia escreve cartas para sua bisavó sempre ornadas de sentimentos e com linguagem poética. O livro consegue fazer fusão entre a comida e sentimento, o que torna possível reconfigurar nosso estado de espírito.

“Enlouqueço devagar nesta cozinha. Converso com as panelas e peço conselhos sentimentais ao manjericão, sendo que somente a hortelã deve entender destas coisas, afinal há muito que é usada para perfumar hálitos”. Pág. 52

Os livros têm o poder de alimentar nossa alma, mas estar atento a culinária que os mesmos carregam é um desafio caloroso a nossa imaginação, é adentrar na cultura alheia e retornar renovado, é uma viagem sem sair do lugar para as mesas de donas de casas do mundo inteiro, das chefs de cozinha mais badaladas. Confesso que depois dessas leituras sempre me mantenho atento aos alimentos que os livros carregam.

Idayane Ferreira – Conheci o Heider no app do clube de assinatura de livros, a TAG – Experiências Literárias. Entre as centenas de publicações no aplicativo, as dele me chamaram atenção pela leveza – esse tempero necessário (e tão caro) aos nossos dias atuais – e pela capacidade de tratar de assuntos bem diversos. Mandei convite de amizade e ele aceitou (mais uma vez gratidão, Heider!). E de imediato o convidei para escrever uma coluna colaborativa para o Virando a Página, ao final do convite escrevi algo como “acho que isso dará um bom caldo”, e dois dias depois lá estava na minha caixa de e-mail, com o título O caldo, um texto maravilhoso sobre gastronomia literária.

Adorei o tema e fiquei pensando sobre o assunto por um bom tempo: afinal, quais livros me deixaram com água na boca? Percebi, um tanto encabulada, que não lembrava o nome de nenhum prato ou comida citado nos livros que já devorei. 

Além disso, dei-me conta de que havia fixado na memória a relação das personagens com a comida mais do que a comida em si. Por exemplo, no livro A primeira luz da manhã, autobiografia da escritora e jornalista indiano-americana Thrity Umrigar, lembro-me da Mehroo, tia solteira da Thrity, que cuidava de todos. Ela era a única pessoa vegetariana da casa e responsável por preparar o alimento da família que comia carne. A inequação sentida por Ashima, personagem do livro O xará de Jhumpa Lahiri, também passa pela comida. A falta de ingredientes e a impossibilidade de preparar algumas receitas tradicionais indianas faz com ela se sinta ainda mais estrangeira nos EUA.

Pensei também nos inúmeros livros que de alguma forma me foram alimento para o espírito (nos mais diferentes sabores): Estrela da Vida Inteira, reunião das poesias completas do Manuel Bandeira; as crônicas do Rubem Alves em O retorno e terno; Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector; Um sonho no caroço de abacate, do Moacyr Scliar, só para citar alguns. O certo é que o Heider, com o tema da coluna de hoje, fez com que eu refletisse bastante. Mais do que um excelente caldo, ele ofereceu com seu tempero de palavras um sabor todo especial as minhas próximas leituras. 

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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