Sem pai nem mãe, na porta da sociedade

Não fosse, talvez, o pedido de um amigo – para que eu escrevesse sobre a redução da maioridade penal – e a obra Pixote: Infância dos mortos, do escritor maranhense José Louzeiro (1932-2017), ficasse ainda um bom tempo parada na minha estante. Comprei esse livro há pelo menos dois anos por causa do filme Pixote: a lei do mais fraco (1981), que havia me impactado profundamente quando o assisti, em 2012. Embora o primeiro tenha servido como base para o argumento do segundo, há diferenças significativas entre o foco narrativo dos dois. E neste caso não cabe aquela máxima “o livro é melhor que o filme”, ou vice-versa, ambos são igualmente bons, cada um com a sua especificidade, claro.

Dividido em oito capítulos, o livro Pixote: Infância dos mortos (1977) conta a história de um grupo de menores abandonados que se conheceram pelas ruas do Rio de Janeiro e tornam-se amigos: Dito (personagem principal), Fumaça, Manguito e Pixote. Em situação de vulnerabilidade social, eles vivem sem passado, sem família, sem nenhuma perspectiva de vida, mas com um futuro certo: serão eliminados de forma cruel e violenta, principalmente pelos agentes do Estado. Antes que isso ocorra, porém, serão muitas vezes os protagonistas dessa violência cotidiana que vemos nos noticiários. 

“Não tinha dúvida quanto ao futuro. Mais cedo ou mais tarde o acertariam. Por isso, até lá, deveria prevalecer o que fosse mais ágil. Puxar e disparar primeiro, antes de qualquer um. Cravar a faca com força, quando menos se esperasse. Ele, Fumaça, Encravado, Castigo de Mãe. Todos, o mesmo futuro. Cada dia um. Como Zebrado e Pixote e agora Manguito”.

A obra é de leitura rápida, mas incômoda. O autor não “se absteve de descrever situações brutais, que mostram muito bem o grau de desumanização a que chegamos”, “vai fundo na descrição psicológica dos meninos, revelando seus sonhos, suas angústias, e toda sua perplexidade diante de um mundo hostil” e traz uma ótica interessante para repensar sobre a redução da maioridade penal como resposta eficiente para a superação da violência. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726.712 pessoas encarceradas, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em 2017. 

Louzeiro se inspirou na Operação Camanducaia, como ficou conhecido o episódio ocorrido em outubro de 1974, quando policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo (DEIC) transportaram quase 100 menores de idade, supostamente todos infratores, até às margens da Rodovia Fernão Dias, nas proximidades da cidade mineira de Camanducaia. Lá os jovens, com idades entre 11 e 17 anos, foram despidos e jogados de uma ribanceira, após uma sessão de espancamentos.   

“Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança.  Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta. A morte de cada malvivente surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam às vítimas humanas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise”. (Eduardo Galeano, in O ensino do medo)

Extras:

Recomendo assistir ao filme Pixote, a lei do mais fraco, no Youtube. Direção de Héctor Babenco.

O livro chama-se apenas Infância dos mortos. Com o sucesso do filme recebeu o nome Pixote ao título original.

Autor de mais de 40 livros, além de telenovelas e roteiros para cinema, José (de Jesus) Louzeiro foi um dos pioneiros no Brasil do gênero romance-reportagem, ficção baseada em acontecimentos policiais verídicos.

José Louzeiro também trata sobre o tema da violência contra menores em situação de rua no livro Praça das Dores (1994) – uma homenagem aos meninos assassinados no massacre da Candelária, ocorrido em 1993. 

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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