Tenho pensado muito sobre a raiva e sobre como esta emoção básica humana é incompreendida pelas pessoas. Tanto os humanos quantos os animais têm raiva, porque ela se origina de nossa amígdala e serve a uma função primitiva importante em nossa sobrevivência como espécie.
Saber sobre a importância da raiva em nossa escala evolutiva não me diz muita coisa, principalmente porque fomos criados para não expressarmos sentimentos negativos, pois somos bombardeados desde a infância a praticar o bem e a ter emoções boas.
Por que devo reprimir minha raiva? Por que algumas emoções são malvistas, como a raiva, o ciúme e a inveja? A minha hipótese é que autorizar as pessoas a sentirem emoções consideradas más esbarra no processo civilizatório, pois o homem não é livre para fazer o que quer; a civilização impõe limites e é preciso obediência às leis da sociedade para manter um equilíbrio social.
Mas o que dizer no plano individual? Sabemos que, quando uma emoção é represada, em algum momento ela vai estourar. A raiva nos priva de raciocínio lógico e de falta de tranquilidade para discernir o que está borrando nosso equilíbrio emocional. Suponho que neste ponto, a raiva não nos cai bem, pois o que não conseguimos colocar em palavras, retorna em ato de muitas formas, principalmente em agressividade.
Estes dias li “Raiva”, de Monica Isakstuen, um livro que apresenta os desafios femininos diante da maternidade, sobrecarga feminina e casamento. Temos uma mãe que precisa cuidar sozinha de três filhos pequenos, um animal de estimação e uma casa gigante num país de primeiríssimo mundo, a Noruega. Como a autora não dá nome aos personagens e nem situa geograficamente a sua história, temos a oportunidade de conhecer a realidade de uma mulher com uma casa toda equipada para funcionar e num país onde as coisas funcionam. O livro deixa claro que ser mãe é uma experiência extrema em qualquer lugar.
Mas o que me chamou a atenção foi a resposta da protagonista ao seu desamparo: uma agressividade desmedida em noites mal dormidas cheia de sonhos ainda mais agressivos do que a realidade. Segundo Freud, sonhos são as estradas sem pavimentação que nosso desejo encontra para irromper. Em um dos sonhos, ela adota vários gatos e não dá conta de cuidar deles porque são muitos, dão trabalho e não há mais espaço físico e psíquico para ela ser ela mesma, então ela vai numa clínica veterinária e faz eutanásia em todos eles: “adeus, gatinhos, me despeço num sussurro. Então dou as costas e me vou, com a sensação de alívio no corpo”. Quando questionada pelo psicólogo sobre o remorso em ser mãe, ela responde jogando a bolsa na parede com muita agressividade.
São atos que apontam uma mãe exausta, que perde o controle e explode em violência. Sua raiva, por mais absurda e legítima que pareçam, mostram um sujeito que sempre teve raiva e foi desautorizada a se expressar, a deixar vir esse sentimento tão inoportuno e que nos convoca a pensar se somos bons ou maus quando sentimos algum afeto não tão nobre. Aliás, este é um dos questionamentos da protagonista logo após seus rompantes de raiva. Sente alívio num primeiro momento, mas tem muito medo de como se comportam suas mãos…
Fui criada por uma mãe sozinha, que trabalhava muito e tinha muita raiva, impaciência e agressividade. Ler este livro e ver crianças tão pequenas sendo agredidas por atos tão banais, como não colocar uma bota ou ficar brincando na cozinha enquanto a mãe cozinhava, me fez rememorar as diversas vezes que apanhei por tão pouco, porque minha mãe não sabia lidar com as próprias emoções e ver que ela era corroída pelo remorso de ter tido filhos, assim como a protagonista.
Aprendi a reprimir as emoções ruins para não apanhar, mas isso teve um preço: reconhecer que raiva é uma emoção tão legítima como qualquer outra e não reconhecer uma eu consumida pela culpa de ter explodido de raiva ou implodido para não me expressar.
Talvez a delicadeza do fazer análise está em saber que você está autorizado a sentir um afeto hostil, mas não a agir segundo este afeto, pois quando somos autorizados a falar sobre o que nos angustia, a palavra aplaca a angústia e as crises de raiva são faladas e não atuadas.
Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.