“Ela Seria o Rei” é o livro de estreia da escritora liberiano-americana Wayétu Moore e se trata de uma obra de ficção histórica com pitadas de realismo mágico, que aborda a fundação da Libéria.
Wayétu Moore parte da vida de três personagens para nos mostrar como foi a colonização e criação da Libéria, chamando a atenção para a história do povo negro escravizado que era levado da África em uma época em que diversos países já tinham banido e criado leis que proibiam o comércio dos escravizados. Vamos conhecendo a estrutura, a organização social e cultural de diversas tribos e como a fome, o exílio e a exclusão destes personagens contam a história de um povo que foi forçado a viver uma vida aprisionada, sem liberdade num espaço geográfico que antes lhe pertencia.
Na aldeia Lai, Gbessa é amaldiçoada ao nascer e exilada de seu povo, sob suspeita de que seja uma bruxa. Mordida por uma cobra e deixada para morrer, ela sobrevive. June Dey, nascida como escravizada em uma plantação na Virgínia, escamoteia a sua força incomum, até que um confronto o obriga a fugir. Norman Aragon, filho de um colonizador britânico branco e de uma escravizada, herdou o dom da mãe de se fazer invisível.
Apesar de se tratar de realismo mágico, poderíamos apostar que a imortalidade, a força além do esperado e o dom de não ser visto são qualidades que fazem parte do nosso imaginário e aponta para o infantil que há em todos nós. Quem nunca vestiu a capa da invisibilidade e brincou de super gêmeos que atire a primeira pedra. Ou o primeiro pau no gato.
Falar sobre o exílio e o silêncio que Gbessa é aprisionada nos faz lembrar do recalque, uma estrutura psíquica muito utilizada por nós inconscientemente para afetos que são incompatíveis com nossa vida psíquica.
O recalque é uma operação de negação que ocorre no interior do ego, como um juízo pelo eu. Trata-se de uma negação que diz “isso não é tolerado por mim”, então, o sujeito quer que isso que é intolerável saia, pois não quer lembrar disso. Essa é a produção de um recalcado. Porém, tudo aquilo que é negado simbolicamente, vai para o inconsciente.
Gbessa nasceu de Khati, uma mulher da aldeia Lai, mas nasceu no dia em que os anciãos decretaram como dia amaldiçoado. Gbessa foi abominada, estranhada e exilada do seu povo, pois seria intolerável para o grupo reconhecer seus traços no seu próprio rosto, em sua maneira de estar no mundo, tão familiar ao povo da aldeia. Gbessa é uma estranha familiar. Uma amaldiçoada. Uma bruxa. Precisa ser afastada do grupo.
Quando Gbessa volta do exílio na floresta, há o retorno do recalcado pelo grupo e aqueles afetos que estavam esquecidos e quem ninguém mais lembrava, retorna à luz do dia.
June Dey, nascida como escravizada em uma plantação na Virgínia, durante muito tempo, teve uma vida servil, presenciou seus pares sofrendo castigos terríveis, mas a partir do momento que sua invulnerabilidade veio à tona, ela passou a ser exilada do grupo. Rechaçada, recalcada, afastada.
Norman Aragon, filho mestiço de um europeu cientista com uma jamaicana negra, tem o dom de desaparecer, de ficar invisível e de sentir o ambiente em sua volta. Norman e sua mãe eram avaliados pelo cientista, pois eram dotados de dons sobrenaturais. “O tipo mais cruel de solidão é a que se sente na presença de outras pessoas”, diz Norman ao se isolar na floresta. Norman era parte do seu povo, mas não vivenciava o dia a dia com eles. Um estranho.
Freud, em seu texto “o estranho infamiliar” diz que existem muitas formas de negar o familiar; a primeira forma aponta para uma solução provisória, na qual aquilo que deveria permanecer oculto, mas que vem à tona; a segunda, fala do horror e da negação da noção de familiaridade, de infamiliaridade. Familiar é nossa casa, nossa intimidade em oposição à floresta e ao mundo exterior. A terceira série de oposições ao familiar é o que permanece oculto, só pertence a alguns, então causa estranhamento quando é revelado surpreendentemente para todos. A má sorte de Gbessa, a força de June Dey e a invisibilidade de Norman.
Não por acaso, aquilo que não reconhecemos em nós, rechaçamos nos outros.
Há um desafio em reconhecer os dons dos personagens, pois o outro sempre me interroga na sua diferença, me descentra e me apresenta aquilo que me falta, revelando a minha incompletude. Seria a falta de falta, ou seja, a completude de Gbassa, de June Dey e de Norman que incomoda tanto a seu povo? Seriam eles estranhos “mais que” familiar? Afinal, vejo teus traços os meus traços, mas não reconheço em ti os seus dons.
Ficha técnica:
Título: Ela Seria o Rei
Autor: Wayétu Moore
Número de páginas: 304
Ano: 2022
Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.