Polarização dos afetos familiares

As eleições geram ansiedade, brigas e desentendimentos com pessoas próximas, o que nos tem causado sofrimento ou medo da violência que todo dia vemos nos noticiários entre os eleitores adversários. Conversas sobre política invadem nosso cotidiano e a impressão que temos é que há uma exaustão, um sofrimento mental gigante por causa da política. Estamos todos sob uma grande tensão.

O sofrimento com a política como pano de fundo tem sido uma tônica geral que atinge os brasileiros indistintamente, mas seus efeitos são vistos na esfera particular, principalmente em relação às questões familiares. Temos visto parentes com dificuldade no convívio, rompimento por causa das diferenças e pouca disponibilidade de se haver com as discordâncias. A família é um espaço de convivência criado por laços de sangue que nos obriga ao contraditório, diferentemente das relações com amigos que são laços por escolha. Então, como conviver com as pessoas que mais amo, com histórias em comum que têm posições políticas que não tolero? Por que é tão difícil aceitar opiniões divergentes em família?

O difícil da divergência é porque ela nos obriga a repensar nossas opiniões e a sair da nossa zona de conforto. Opiniões não são apenas baseadas em razão; elas são atravessadas pelos sentimentos e emoções e falam do nosso lugar subjetivo, dos nossos valores e modo de funcionamento psíquico. Quando alguém não concorda conosco, este contraditório costuma nos ofender pessoalmente, pois muitas vezes não estamos preparados para avaliar e ponderar nossas opiniões, então fere nosso narcisismo, nosso lugar de certeza e nos obriga a uma posição mais humilde, que é escutar o outro. Tarefa difícil, né? Escutar o outro sem se sentir pessoalmente ofendido pela divergência e possibilitar o diálogo com a diferença parece impossível neste atual momento em que vivemos. O que todos queremos é ter nossa posição respeitada.

Apesar desta dificuldade nas relações, é preciso saber que o sofrimento é diferente para cada pessoa. Independentemente de ser de esquerda ou de direita, o que se observa é que o sofrimento maior não se dá nos extremos. Nas extremidades, há mais afetos de violência e de agressividade, pois há uma certeza absoluta do que se acredita. Quem consegue ouvir um pouco a razão do outro, quem se sensibiliza com o que o outro pensa, há angústia por não conseguir demover sua opinião e fazer o outro acolher a sua.

Como lidar com tanta ansiedade e falta de diálogo em nossa família? Apesar da elaboração de nosso mal-estar ser subjetiva, uma boa saída é apostar na convivência: fazer coisas juntos que não atrite a relação. Um bom começo é ver um filme que todos estejam dispostos e fazer refeições juntos sem conversar sobre os incômodos. Quem sabe criando combinados do que é possível ser feito no espaço privilegiado de convivência familiar para que todos se sintam acolhidos nesta época de tanta desarmonia?

Na impossibilidade de diálogo em relações mais agressivas e mais violentas, o mais importante é investir em afetos possíveis: procurar quem é possível conversar, como os amigos. Como nos lembra a psicanalista Vera Iaconelli, nós adoecemos no laço social e nos curamos no laço social.

Lília Sampaio

Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.

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