Se você abrir a bíblia cristã no primeiro capítulo, em Gênesis, você vai ver o deus cristão oferecendo para Adão e Eva, suas primeiras criações humanas, tudo que está no Jardim do Éden para seu consumo:
“Tudo o que vive e se move lhes servirá de alimento. Assim como lhes dei os vegetais, agora lhes dou todas as coisas.” (Gênesis 9.3)
Por essa citação da bíblia cristã é possível enxergar a ponta do iceberg de um dos maiores sensos comuns do mundo: a exploração de animais é justificada, porque Deus os fez para nos servir. “Ora, se somos feitos à imagem e semelhança de Deus, nosso criador, então naturalmente somos os seres mais importantes da Terra e tudo está ao nosso dispor para uso, certo?”
É isso que muita gente acha. E vale dizer que é um dos argumentos mais fortes quando discutimos a exploração e o consumo de animais não-humanos. Acredito que, para compreender esse senso comum, precisamos, primariamente, esclarecer os mitos que o sustentam.
Os criadores do mito
No Capítulo 5 do livro “Por Que Amamos Cachorros, Comemos Porcos e Vestimos Vacas”, a autora Melanie Joy discute a mitologia por trás da ideologia do carnismo. Ela argumenta que a cultura e a indústria da carne criam e perpetuam mitos que justificam a exploração e o sofrimento dos animais para consumo humano. Para lidar com essa questão, a autora identifica três principais criadores de mitos.
O primeiro são as empresas que compõem a indústria da carne. Essas empresas promovem a ideia de que a carne é essencial para uma alimentação saudável e feliz, além de retratarem o encarceramento e a exploração de animais como algo natural e humano. Isso faz com que a realidade dos matadouros e fazendas industriais sejam ignoradas e escondidas.
O segundo são a cultura e a tradição (aqui se faz um recorte também de religião). Em muitas culturas, a carne é vista como um alimento básico e tradicional, fazendo com que as pessoas não questionem essa tradição. A cultura também promove a ideia de que os animais são inferiores aos humanos e que suas vidas são menos valiosas – como a gente viu ali no início, sob a lente do cristianismo.
Nesse mesmo livro, que é a base para nossa discussão aqui, a autora identifica três conceitos fundamentais que ajudam a entender a ideologia do carnismo: os três Ns. Esses conceitos são normalidade, naturalidade e necessidade.
A normalidade
“O costume conciliará as pessoas com qualquer atrocidade” –
George Bernard Shaw
A normalidade é uma crença difundida pela cultura e pela indústria da carne de que comer carne é uma prática normal e natural. Essa crença é tão enraizada que muitas pessoas sequer questionam a ideia do porquê carne é uma parte essencial da dieta humana.
A autora aponta que a normalidade do consumo de carne é reforçada pela cultura de uma forma bastante sutil. Por exemplo, em desenhos animados, filmes e séries de TV, os personagens frequentemente são retratados comendo carne sem que isso seja questionado. Além disso, a carne é normalmente servida em eventos sociais, como churrascos e festas, o que faz com que a prática do consumo de carne seja vista como parte integrante da cultura e da tradição.
A indústria da carne também desempenha um papel fundamental em perpetuar a normalidade do consumo de carne. Por meio de campanhas publicitárias, a indústria retrata a carne como uma fonte de prazer, saúde e força. Além disso, a indústria também investe em pesquisas que buscam comprovar os supostos benefícios da carne para a saúde humana.
Ao reconhecer a normalidade do consumo de carne como uma crença culturalmente construída, as pessoas podem começar a questionar essa prática de forma mais racional. Assim como fizemos com o direito ao voto para mulheres, por exemplo, que foi negado por séculos, a fim de proteger um ideal patriarcalista.
A naturalidade
“[O nazismo], ao contrário de qualquer outra filosofia política ou programa partidário, está de acordo com a história natural e a biologia do homem.” – Rudolf Ramm, perito médico nazista
O segundo N, a naturalidade, se refere à crença de que o consumo de carne é natural e, portanto, moralmente justificável. A ideia é que os humanos sempre comeram carne e, por isso, é natural para nós continuar fazendo isso. Eu não preciso nem listar a quantidade de coisas que “os humanos faziam desde a antiguidade” e que agora nós não consideramos mais éticas, né? Isso é uma prova de que nossas crenças e práticas podem sim mudar, também como podem ser moldadas. No nosso caso, em vários recortes: região, raça, credo, etc.
Melanie Joy argumenta que a crença na naturalidade do consumo de carne é baseada em mitos e não na realidade. Ela indica que os humanos não são naturalmente carnívoros, e que a maior parte da história da humanidade foi baseada em dietas predominantemente vegetarianas. Além disso, a criação de animais de consumo em larga escala muitas vezes envolve práticas que são tudo menos naturais, como a superlotação, a falta de acesso a luz solar e ar fresco, além da alimentação com hormônios e antibióticos.
“Quando uma ideologia é naturalizada, acredita-se que seus princípios estejam de acordo com as leis da natureza (e/ou a lei de Deus, dependendo de o sistema de crenças da pessoa estar baseado na ciência, na fé ou em ambas)” – Melanie Joy
Joy cita vários exemplos para ilustrar como a crença na naturalidade da carne é baseada em mitos. Por exemplo, ela aponta que os primeiros humanos não eram naturalmente carnívoros e provavelmente dependiam de frutas, vegetais e outros alimentos vegetais para sobreviver. Ela também observa que muitas culturas ao redor do mundo têm uma longa tradição de dietas vegetarianas, o que sugere que o consumo de carne não é uma parte essencial da dieta humana.
A necessidade
Nós, do Sul, não renunciaremos, não podemos renunciar às nossas instituições. Manter as relações existentes entre as duas raças [brancos e negros]… é indispensável à paz e à felicidade de ambas. – John C. Calhoun, ex-vice-presidente dos Estados Unidos.
“Se comer carne e demais produtos de origem animal é um imperativo biológico, trata-se então de uma necessidade para a sobrevivência da espécie humana. E, como acontece em todas as ideologias violentas, essa crença se reflete no paradoxo central do sistema: matar é necessário para o bem maior; a sobrevivência de um grupo depende da morte de outro.” – Melanie Joy
A crença na necessidade da carne é reforçada pela indústria da carne, que sugere que é impossível ter uma dieta saudável e equilibrada sem a ingestão de carne. Além do exemplo de culturas ao redor do mundo que têm uma dieta baseada em plantas e são saudáveis e bem-sucedidas, Joy também aponta que a necessidade percebida de carne é influenciada por outros fatores culturais, como o desejo de status social ou o desejo de parecer masculino. Por exemplo, em algumas culturas, comer carne é considerado um sinal de riqueza e status, e as pessoas que não comem carne são vistas como pobres ou inferiores.
Outro exemplo é a associação cultural entre a carne e a virilidade masculina. Em diversos contextos, os homens são encorajados a comer carne como uma forma de mostrar sua força e masculinidade. Isso pode levar muitos homens a se sentirem pressionados a comer carne, mesmo que não queiram. Eu falo sobre isso na coluna anterior, na qual cito o livro “Política Sexual da Carne”, da Carol J. Adams, vale a pena você voltar e ler, para entender melhor.
Questionando os mitos
A normalidade, naturalidade e a necessidade atribuídas ao consumo de carne são construções sociais e não necessariamente correspondem à realidade. Questionar esses mitos é essencial para um debate mais informado e ético sobre a exploração e o consumo de animais não-humanos.
É importante lembrar: o veganismo é um posicionamento político que se opõe à objetificação e mercantilização dos animais e se compromete com a luta pela emancipação animal. Não é uma dieta, não é um estilo de vida. É se opor ativamente à opressão, dia após dia.
Se você gostou desse texto, recomendo a leitura do livro “Por Que Amamos Cachorros, Comemos Porcos e Vestimos Vacas”, de Melanie Joy: JOY, Melanie. Por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas. Editora Cultrix, 2015.