Falar sobre a obra de Elena Garro é falar sobre a importância da literatura mexicana para compreender uma das literaturas mais importantes do mundo, bem como para falar sobre o início do realismo mágico, pois “As Lembranças do Porvir” foi escrito em 1963, quatro anos antes de “Cem Anos de Solidão”.
Neste livro, Elena Garro fala sobre um pequeno povoado mexicano que é dominado de forma cruel e sanguinária pelo general Francisco Rosas e seus homens em uma narrativa comprometida com o contexto político e histórico. O livro é narrado pela voz do próprio povoado, que conta suas memórias em um tempo mítico não-linear do eterno retorno da memória de Ixtepec. Elena Garro dá voz ao povoado para nos contar uma história de resistência, de violência e de como o amor foi a grande trincheira de resistência de Ixtepc, tomado pela violência e o autoritarismo em meio ao horror e a crueldade.
O título do livro já nos traz notícias deste narrador quando trata de uma memória que fala do passado, mas que a antecipa no futuro do tempo que está por vir, por acontecer. Esta liberdade temporal, tal qual o inconsciente, um tempo de repetições, sem escapes da realidade cruel em que foram submetidos, em que suas personagens tentam criar fissuras e encontrar espaços para a fuga, para a posteridade, para os acontecimentos que sucederão, para a transgressão, para o amor.
Em psicanálise, o conceito de inconsciente está intrinsecamente ligado ao conceito de memória, pois Freud vai nos dizer que a memória é o desejo olhando para trás. O narrador do texto de Elena Garro começa o livro dizendo que “só minha memória sabe o que contém. Vejo-a e me recordo (…) vejo-a e transfiro-me em muitas cores e tempo”. O narrador, Ixtepec, contempla o que tem hoje e compara com o passado, antes de ser sitiado, conquistado e engalando para receber exércitos e rememora um tempo em que o povoado mexicano estivera em um verde e luminoso fácil para a mão trabalhadora de seu povo, antes deste povo agonizar nas mãos da Revolução. É o desejo olhando para trás.
É muito comum pensarmos no tempo como tempo sequencial, ordenado como num relógio ou em um calendário, que organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado, presente e futuro. Também estamos acostumados a pensar na memória como um almoxarife que guarda um número significativo de lembranças, de momentos da vida, que lá ficam quietos, guardados, disponíveis para o momento no qual precisamos deles e queremos reencontrá-los.
A memória é um complexo sistema de armazenamento e evocação, com a peculiaridade de poder editar e reeditar lembranças, narrar a partir de uma determinado ponto e perspectiva, com a participação ativa de quem narra, armazena e evoca. No entanto, para a psicanálise, tanto o tempo quanto a memória só podem ser considerados com temporalidades diferentes funcionando nas instâncias psíquicas e a memória não existe de forma simples, pois ela é múltipla, registrada em diferentes maneiras no inconsciente onde são considerados o deslocamento das ideias, as imagens inverossímeis presentes nos sonhos e os relatos da associação livre dos pacientes.
Num texto belíssimo, Freud compara a memória ao bloco de desenho mágico reutilizável para delinear o mecanismo da memória. O Bloco Mágico é descrito por Freud como sendo formado por uma prancha de cera escura por cima da qual se sobrepõe um papel encerado e uma lâmina de celuloide. Seu mecanismo funciona a partir pela pressão de um instrumento pontiagudo sobre sua superfície. As incisões resultantes tornam-se visíveis pelo contato do celuloide e do papel encerado com a base de cera. Entretanto, quando levantada à folha de cobertura da prancha de cera, a escrita desaparece no papel encerado, possibilitando assim fazer uma nova inscrição no Bloco Mágico, porém com as marcas na prancha de cera que podem ser vistas quando postas diante da luz, identificando assim que os traços, mesmos constantemente apagados em uma superfície, continuam fixos em outra. Assim como na memória, os traços escritos continuam permanentes no aparelho psíquico, mesmo que sua base em celuloide possa ser apagada repetida vezes.
Quando comecei a ler “As Lembranças do Porvir”, eu lembrei da plasticidade da memória e do texto do bloco mágico quando Dom Martín Moncada sobre pergunta: — “O porvir! O porvir! O que é o porvir?”. Felix pensava no porvir como uma “avalanche de dias apertados uns contra os outros (…) para ele os dias não contavam da mesma maneira que contavam para os demais, pois para ele (…) havia uma multidão de lembranças não vividas entre as várias memórias e a memória do acontecido era a única irreal para ele”. Felix, tal qual Freud, dava levava em consideração os traços que ficavam marcados em sua memória onde o tempo não corria conforme o relógio. Trate-se do tempo do inconsciente, que não é um tempo que passa, é um outro tempo, o tempo da mistura dos tempos, o tempo do só depois, o tempo do porvir. Ixtepec, é, simultaneamente, testemunha viva e morta dos seus acontecimentos.
Ixtepec, um povoado que se desdobra em todos os acontecimentos que por ele passaram e se repartiram no tempo e em sua memória, entre a realidade e a ficção, entre a mentira e a verdade, entre o tempo e o não tempo, um narrador que funciona como o bloco de desenho mágico retrátil freudiano, onde a criação e o trabalho da memória acontecem num processo que se dá entre lembrança e esquecimento, entre a marca na celulose e a não marca no papel de cera, que emerge como testemunho de uma memória movente e de uma vida que acontece aos seus movimentos errantes.
Ixtepec me rememorou o que Walter Benjamin fala das marcas que um narrador deixa em sua narrativa, tal qual nos diz Freud das marcas de memória no aparelho psíquico, quando fala que “a narrativa não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela (a narrativa) mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa que compara o narrador a um oleiro, como a mão do oleiro na argila do vaso”[1].
Vaso, bloco mágico, “imagem coberta de pó”, política de existência, um modo de se articular a história de um povoado ao passado e ao porvir, pois ao narrar uma história, Elena Garro, assim como um oleiro, tenta uma reconstrução, que mistura vida e morte e faz desse ritual de memória de Ixtepec sobre uma época idílica, viva em suas reminiscências e que pode ser rememorada para ser contada de acordo com os traços mnêmicos, rastros do desejo que povoam o aparelho psíquico do narrador.
“As Lembranças do Porvir” coloca em cena uma memória fragmentada narrada pelos olhos de Ixtepec e apresenta uma saída do autoritarismo vivido naquele povoado: as reminiscências do que fora um dia, os destinos de um amor que causa graça e desgraça e as “lembranças do porvir pelos séculos dos séculos”.
Ficha técnica:
Título: As Lembranças do porvir
Autora:Elena Garro
Editora: Arte e Letra
244 páginas.
[1] BENJAMIN, W. Obras escolhidas v.1. Obras Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, p.37-50, 2012.
Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.