Aproveitei o Carnaval para ouvir episódios atrasados da Rádio Novela Apresenta, podcast produzido pela Rádio Novelo.
O último episódio que eu havia ouvido completo, “CPF na nota?”, rendeu uma série de polêmicas no mundo literário. Fechei o episódio seguinte e cheguei, enfim, à história que engatilhou o texto de hoje: “O apagão”. Ele conta a história de Neide, que, ao acordar após uma cirurgia, havia simplesmente perdido 14 anos de memórias da sua vida. Achei a história angustiante, mas também refleti muito a partir dela.
Se, hipoteticamente, você perdesse suas memórias dos últimos 14 anos, quem seria você hoje? Quais pessoas estariam no seu radar? Quais seriam suas leituras e perspectivas? Estou prestes a completar 36 anos… há 14, eu havia acabado de entrar na universidade, pesava alguns quilos a menos, era ainda mais insegura.
Fiquei pensando como muito do que sou hoje foi formado e moldado a partir das minhas escolhas na universidade. Não só profissionalmente, mas também nas escolhas pessoais. Conheci meu marido na universidade, por exemplo. Ok, mas o que esse papo todo tem a ver com literatura?
Penso que a memória seja uma espécie de espelho, um estranho espelho, que reflete pedaços de nós mesmos, mas sempre com um leve desvio—uma luz que incide diferente, um detalhe que se desfaz na névoa do tempo. E a literatura, talvez mais do que qualquer outra arte, é a ferramenta que nos permite visitar esses reflexos, reorganizá-los, reinventá-los.
Ler é viajar no tempo. Não só pelo modo como um romance do século XIX nos transporta para um salão iluminado a velas ou um conto de ficção científica nos joga em uma civilização futura, mas também porque os livros carregam pedaços da nossa própria história. Quem nunca folheou um livro lido na adolescência e sentiu um arrepio de reconhecimento, como se visse uma versão mais jovem de si mesmo escondida entre as páginas? A literatura, além de contar histórias, guarda memórias.
Há livros que nos levam de volta a momentos precisos da vida. Uma frase sublinhada em um volume antigo pode ser a porta de entrada para um verão distante, um cheiro de casa de avó, uma tarde chuvosa em que lemos as últimas páginas de um romance arrebatador. Porque a leitura não é só um ato intelectual—é também sensorial, afetivo, uma forma de nos conectarmos com quem fomos.
E há também os livros que nos ajudam a lembrar do que nunca vivemos. Autores como Guimarães Rosa, Toni Morrison ou Marcel Proust escrevem mundos que não habitamos, mas que, de alguma forma, se tornam nossos. Isso porque a literatura não apenas resgata memórias; ela as fabrica, as insere em nosso imaginário. A gente se lembra do que leu como se tivesse vivido.
A pergunta que ficou ressoando depois de ouvir o episódio do Rádio Novelo Apresenta foi: se perdêssemos a capacidade de visitar momentos-chave da nossa vida, ainda seríamos as mesmas pessoas? A literatura me deu a resposta. Sem a memória, sem os livros que nos atravessaram, sem a possibilidade de revisitar e reinterpretar a nossa própria história, seríamos, no máximo, sombras do que já fomos.
No fim, ler e lembrar são quase sinônimos. E cada página virada é um retorno a um lugar que talvez nem saibamos que conhecemos.