Lygia 'Escrita em Sangue'

Meu gosto por leitura é antigo e, como muitas meninas, começou com os romances de banca de revista. Lembro-me de sair da escola e passar pelo ponto de ônibus onde uma senhora vendia exemplares da Editora Harlequin. As capas chamativas, em tons de rosa e vermelho, exibiam casais em abraços cinematográficos. Aqueles livros, que há muito tempo se perderam entre mudanças de casa e fases da vida, foram meu primeiro contato com histórias feitas — e percebidas — como “para mulheres”.

Com o tempo, entendi que essa etiqueta carregava mais peso do que parecia. “Para mulheres” geralmente quer dizer “menos importante”, “menos sério”, “menos culto”. Seja nos romances de banca, nas baladas pop ou na literatura, tudo que é amado por meninas costuma ser tratado com condescendência. A leitura feminina, assim como outras expressões do universo das mulheres, é frequentemente desvalorizada — e essa desvalorização é, no fundo, um espelho do lugar que as próprias mulheres ocupam socialmente.

Foi num extremo oposto daqueles romances que conheci, já adulta, minha maior referência na literatura brasileira: Lygia Fagundes Telles. Li seus contos com deslumbramento — Venha Ver o Pôr do Sol, Seminário dos Ratos. Descobri, então, que essa mulher — que escreveu histórias inquietantes e profundas, que foi uma das primeiras a estudar na USP, que ocupou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras — foi, ainda assim, rotulada por muitos críticos de sua época como autora de “literatura feminina”. Ou seja: uma literatura “menor”, “leve”, “adequada às mulheres”. Faz sentido?

Não faz. O que Lygia escreve é, sim, profundamente marcado pela perspectiva feminina — mas é justamente isso que a torna grande. Sua literatura revela, com fineza e contundência, as estruturas que moldam a experiência das mulheres. Sua escrita não é pequena: é precisa. E por isso, muitas vezes, escapa aos olhos de leitores pouco atentos. Lygia transforma a mulher em sujeito da narrativa — não mais objeto, mas voz que observa, sente, escolhe, sofre e interpreta.

Nietzsche escreveu: “De todo o escrito só me apraz aquilo que uma pessoa escreveu com seu sangue. Escreva com sangue e aprenderá que sangue é espírito.” Lygia, por sua vez, escreveu: “Através do sangue eu podia me apossar do idioma do meu doador. A palavra transmitida no sangue.”
Sua literatura carrega o sangue da experiência. Ela escreveu a partir do que viveu: foi mulher numa época em que suas escolhas — estudar Direito e Educação Física, por exemplo — eram vistas como ousadias masculinas. Criou uma linguagem própria, enraizada em sua condição de mulher brasileira, marcada por desigualdades históricas e exclusão.

“A literatura feminina tem […] uma fisionomia própria […] decorrente da situação da mulher, das suas raízes históricas… a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as mulheres do mundo” (Telles, 1997, p. 57). Essa afirmação ecoa séculos de história. No Brasil oitocentista, as mulheres mal tinham acesso à educação ou ao espaço público. Quando começaram a frequentar a escola e a ler romances — inicialmente publicados como folhetins — começaram também a questionar seu lugar no mundo.

Na segunda metade do século XIX, as mulheres de classe média e escolarizadas não só passaram a ler, mas também a escrever. E suas narrativas muitas vezes desestabilizaram a ordem social. Ao dar voz às experiências femininas, essas autoras propuseram uma literatura disfarçada, ardilosa, cheia de camadas. Uma escrita que jogava com o parecer e o dizer, como forma de sobreviver e resistir. Lygia está nesse legado — e o leva ainda mais longe.

Seu romance Ciranda de Pedra (1954) é um exemplo claro disso. A obra compõe um painel de diferentes tipos de mulheres, todas atravessadas por uma sociedade patriarcal. Um destaque é Laura, mãe da protagonista Virgínia. Laura rompe com a família tradicional ao se envolver com o médico Daniel. Por isso, é internada pelo marido sob a justificativa de apresentar “comportamentos estranhos”. Após sair do sanatório, sua saúde mental se deteriora. Ela já não é a mesma — foi punida por desejar viver fora do papel que lhe foi imposto.

Para entender Laura, é preciso lembrar que o divórcio só foi legalizado no Brasil nos anos 1970. Antes disso, mulheres infelizes em casamentos não tinham meios legais para sair deles. E, durante séculos, era comum que maridos internassem esposas consideradas “imorais” ou “perturbadas” em sanatórios ou conventos. As razões? Adultério, histeria, desejo sexual, ou simplesmente o incômodo de não se conformarem ao esperado. A loucura, muitas vezes, era a moldura conveniente para controlar o desejo feminino.

É essa a coisa que mais me fascina sobre a literatura lygiana, porque apesar de ser uma mulher burguesa, branca e heterossexual, ela não peca em escancarar um problema que nós todas, mulheres e, especialmente, mulheres brasileiras, temos em comum: nossa condição de gênero. É aí que entra a literatura feminina.

Referências: 

OLIVEIRA, Romair Alves de; CAMARGO, Flávio Pereira. Escrita feminina: uma forma de resistência. Via Litterae: Revista de Linguística e Teoria Literária, Anápolis, v. 7, n. 2, p. 329–349, jul./dez. 2015. Disponível em: http://www.revista.ueg.br/index.php/vialitterae/ 

CARVALHO, P. O. Um estudo sobre as representações da mulher em Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles. Mosaico. São José do Rio Preto, v. 18, n. 1, p. 263-294, 2019.

Dhara Inácio

Escrita em fluxo de consciência — talvez por Clarice, talvez por Hilda. Paraense, ou melhor, transamazônica. Entre a prosa e a poesia, gosta mais é de prosear. Escrevedeira, beletrista e mulher-mistério.

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