Especismo

Quando pensamos sobre realizar testes em animais não-humanos, enviá-los para viagens no espaço, usá-los como entretenimento ou até mesmo comê-los, somos fortalecidos por um só pensamento, que nos assegura de que “está tudo bem”: o moralmente justificável. A moralidade do senso comum é de que os humanos, homo sapiens sapiens, são biologicamente superiores, pois nos foi concedida a capacidade de lógica e raciocínio.

Quando o termo “especismo” foi cunhado por Richard Ryder em 1970, seus estudos foram fortemente fomentados pelos escritos de Charles Darwin sobre evolucionismo, replicando a ideia de que a diferença entre animais não-humanos e humanos é apenas de grau e não de categoria. Logo, o humano não ocupa papel superior na ordem natural.

De maneira muito similar, outras opressões são fortalecidas sob a mesma lógica de exploração e subjugamento, como acontece no racismo e no sexismo. A concessão de posições privilegiadas a certos indivíduos em desfavor de outros é um ponto em comum entre essas discriminações. Racistas violam o princípio de igualdade quando atribuem maior valor aos interesses de sua própria etnia, da mesma forma sexistas violam o princípio de igualdade ao favorecer os interesses do seu próprio sexo. No especismo não é diferente: nossa espécie permite que os nossos interesses se sobreponham aos interesses de membros de outras espécies.

Humanos e animais não-humanos não são iguais em todos os aspectos. Concordamos que estes animais não têm todos os desejos que um humano tem e não compreendem tudo que nós compreendemos. No entanto, nós partilhamos de coisas em comum, como o desejo por comida, água, abrigo, companhia, liberdade de movimentos e ausência de dor.  Como nós, estes animais são sencientes, e não apenas estão no mundo como estão conscientes dele. Os animais não-humanos são o centro de uma vida que é somente sua.

Se nos baseamos nesses princípios fundamentais, humanos estão lado a lado com vacas, galinhas, porcos, cavalos, aves e peixes. Então o que nos impede de tratá-los com a mesma moralidade que tratamos aqueles que pertencem à nossa espécie?

A construção dessa imagem de animais não-humanos começou com a humanidade primitiva, que questionou a existência do indivíduo como espírito e matéria – em separação. Essa ideia foi alimentada muito mais durante a construção da filosofia clássica na Grécia antiga, quando Aristóteles visualizou nos humanos a capacidade de ter espírito, um tipo de alma racional que os tornava superiores à natureza, sendo esta colocada à disposição da humanidade. O humano como centro do universo é uma concepção que perpassou a modernidade e manteve-se na contemporaneidade – dentro das escolas, inclusive. Aprendemos desde muito cedo que tudo que existe no mundo está à disposição para satisfação e gozo desse indivíduo. Podemos chamar essa idealização de especismo antropocêntrico.

Ao analisar a filosofia clássica, temos alguns exemplos para além de Aristóteles. Tomás de Aquino, filósofo cristão, também entendia que a natureza estava a serviço do homem, pois acreditava que os seres “menos perfeitos” estavam a serviço dos “mais perfeitos”. O mesmo com Descartes, que atribui aos animais o substantivo de “máquinas criadas por Deus”, negando, inclusive, a capacidade deles sentirem dor e prazer. Influenciado por esses pensadores, Kant afirma que “os animais não são autoconscientes e estão lá apenas como meio para o fim. Esse fim é o homem […] ”.

A doutrina que entende que os animais devoram as demais espécies porque não possuem noção de justiça também revela uma inconsistência lógica, pois se os homens são os únicos seres que possuem noção do justo, por que razão ele insiste em insultar, escravizar, subjugar e matar as demais espécies?

Um ponto em comum entre todos esses pensadores é que eles enxergam no humano um valor intrínseco, enquanto à natureza e animais não-humanos é atribuída uma visão instrumentalista. O animal, numa visão antropocêntrica, está fadado à finalidade que se deseja dar, ou seja, alimentação, vestuário, entretenimento e conhecimento. Até mesmo os animais domésticos, “quase membros da família”, ocupam um papel de instrumento na vida do homem. Não à toa ouvimos afirmações sobre como cachorros são animais companheiros, usados para caça e vigília. Isso não diminui a importância e carinho que atribuímos a esses animais, mas diz muito sobre como os enxergamos.

Vivemos em um momento que pede mais do que nunca que tenhamos sensibilidade para temas direcionados à proteção do meio ambiente. Dentro desta concepção protetiva, passou-se a discutir a proteção dos animais sob um prisma de dignidade, que lhes conceda a condição de sujeito de direitos. Graças aos conhecimentos advindos da ciência, agora podemos afirmar que o animal não-humano possui capacidade de sentir dor e prazer, ao contrário do que afirmou Descartes. O animal não-humano possui dignidade, valor intrínseco e, portanto, deve ser sujeito de direitos.

As contradições lógicas na exploração de animais e instrumentalização da natureza são várias. Ao longo da história do mundo, fizemos uso da lógica para excluir os animais da comunidade moral, sob o argumento de que eles são privados da capacidade de pensar e de se comunicar simbolicamente, sem pensar que, se os animais fossem apenas instinto, eles jamais poderiam ser domesticados, e se o espírito – o alto da superioridade racional – sempre nos conduzisse ao justo, jamais nos deixaria praticar tanta crueldade contra seres indefesos.

Dhara Inácio

Paraense apaixonada por um bom tacacá, me aventurando pelo Maranhão. Estudante de Jornalismo, Especismo, Gênero & Raça. Acredito no direito à vida, e o veganismo é consequência disso. Posso te apresentar o lado verde da força?

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