“Política Sexual da Carne” é um livro da teóloga vegafeminista Carol J. Adams, publicado em 1990, que aborda a conexão entre o consumo de carne e a opressão das mulheres. Findado o mês de março – um período de celebração e conscientização sobre as lutas femininas ao longo da história -, senti que seria um bom momento para refletir sobre as opressões que as mulheres enfrentam – incluindo aquelas que envolvem a indústria da carne – e sobre a interseccionalidade dessas opressões.
A autora trabalha com alguns conceitos, e, para introduzi-los, vou mostrar uma campanha de divulgação do lançamento de uma edição da Playboy no Brasil, em setembro de 2008:
Talvez esteja um pouco “datada”, já que faz quase 15 anos que isso aconteceu, mas vale a pena nos perguntarmos como pode ser socialmente adequado colocar uma mulher em uma propaganda como um pedaço de carne, seminua, sensualizando de forma apelativa e receber aprovação por isso.
Na publicidade de carne, as mulheres são frequentemente retratadas como objetos sexuais, o que reforça a ideia de que seu valor está ligado à sua aparência e capacidade de agradar aos homens. Assim como os animais, somos objetos de consumo. De acordo com Adams, essa objetificação é resultado de uma cultura patriarcal que naturaliza a dominação masculina sobre as mulheres e a exploração dos animais. Assim como o boi é bife e costela, as mulheres são peitos e bunda. Termos que o patriarcado usa para nos dissociar da nossa integridade como seres vivos e sencientes. Esse conceito é definido pela autora como “referente ausente”. Ela escreve:
“Por trás de toda refeição com carne, há uma ausência: a morte do animal cujo lugar é ocupado pela carne. O “referente ausente” é o que separa o carnívoro do animal e o animal do produto final. A função do referente ausente é manter a nossa “carne” separada de qualquer ideia de que ela ou ele já foi um animal, manter longe da refeição o “múuu” ou o “béé”, evitar que algo seja visto como alguém. Uma vez que a existência da carne é desligada da existência de um animal que foi morto para se tornar “carne”, esta fica desancorada do seu referente original (o animal), tornando- se, em vez disso, uma imagem que não está ligada a nada, imagem esta usada frequentemente para refletir o status feminino, assim como o dos animais. Os animais são o referente ausente no ato de comer carne; tornam-se também o referente ausente nas imagens de mulheres subjugadas, fragmentadas ou consumíveis.” (pág 14, 15)
Quando falamos sobre uma alimentação baseada em plantas, é comum haver uma resistência maior por parte de homens. Uma pesquisa realizada no Reino Unido e nos Estados Unidos aponta que a maior parte das pessoas que seguem uma alimentação vegetariana são mulheres. Acredito que se a pesquisa fosse realizada no Brasil não veríamos um cenário muito diferente. O motivo disso é complexo e permeia a virilidade, o masculinismo e a misoginia; fortes pulsores que levam homens a enxergar na carne uma validação para sua masculinidade.
Em tradução literal a placa acima – de um restaurante de saladas – diz: “Tão boa, que até os caras gostam das nossas saladas”. Sobre isso, Adams afirma:
“Homens que comem carne e batata são o nosso estereótipo de homem forte e vigoroso, rude e disposto, capaz. Mike Ditka, técnico de futebol americano e celebridade, é dono de um restaurante que anuncia “comida de He-Man”, como bife e costeleta de porco. A masculinidade de um sujeito é afirmada pelo que ele come.” (pág 40)
Esse pensamento foi reforçado pelas propagandas de tal forma que ainda hoje você pode encontrar pessoas relacionando o fato de algum homem ser vegetariano/vegano com ser gay ou não sentir atração por mulheres. Comer vegetais é coisa de mulher, “sexo frágil” não combina com uma dieta farta em carnes. Esse conceito é nomeado como “carnalidade” pela autora.
A opressão das mulheres e dos animais está profundamente entrelaçada em nossa sociedade. Segundo Adams, o sistema que permite a exploração de animais é o mesmo que permite a opressão das mulheres e outras minorias. Essa opressão muitas vezes se sobrepõe e se retroalimenta. Por exemplo, a exploração da pecuária envolve uma grande quantidade de trabalho físico, que muitas vezes é realizado por trabalhadores marginalizados, como imigrantes e pessoas de baixa renda. Esses trabalhadores geralmente sofrem abusos e condições precárias de trabalho, o que é um reflexo da maneira como a sociedade trata as minorias.
Por isso, entender a interconexão entre a opressão das mulheres e dos animais é fundamental para lutar contra essas injustiças de forma consciente e interseccional. O feminismo deve ser interseccional.
Esses são apenas alguns dos pontos levantados por Carol J. Adams em seu livro e, se você gostou, recomendo que faça a leitura completa como primeiro passo para uma conscientização sobre a semiótica das opressões, que pode ser também o primeiro passo para a libertação feminina e animal.