Pontuação “polêmica” e estilo narrativo

Entre as leituras deste mês finalizei “Um copo de cólera”, livro de menos de 90 páginas, publicado pelo Raduan Nassar em 1978. A princípio o estilo de escrita me fez lembrar “Ensaio sobre a cegueira”, do renomado escritor português José Saramago: basicamente cada capítulo é um parágrafo longo sem ponto contínuo e divisões, sendo o capítulo “O esporro”, o maior de todos.

A escrita do Nassar possui poética, sensualidade e explosão que vai fazendo do enredo simples um escalonamento para uma agressividade sem razão e sem limites do personagem narrador. É interessante que nem o narrador e nem a mulher (que narra o último capítulo) possuem nomes, apenas os caseiros da chácara: Mariana e Antônio. O que começa como tensão sexual, sedução e desejo termina em bate boca e violência física. A fúria do personagem narrador é desproporcional, contra tudo e contra todos e aparentemente é ativada quando ele percebe um rombo numa cerca viva feita pelas formigas.

A leitura do Nassar despertou em mim uma lembrança divertida – de certa forma notícia velha, mas que ainda me faz rir. Um amigo compartilhou comigo que leitores estavam fazendo críticas sem noção ao livro “Ensaio sobre a cegueira”. Basicamente, “reviews” sobre a obra reclamando da pontuação e falta de espaço e até da tradução (!).  Verdade que ninguém é obrigado a gostar de um livro, mas ficar indignado e avaliar negativamente com base na falta de pontuação e reclamar da tradução de um livro escrito em português é de uma ignorância sem limites – que a gente rir para não chorar. 

Na literatura, a pontuação tende a indicar para o leitor as pausas, entonações e ritmos do texto, como um espécie de “partitura”. No entanto, há autores que subvertem as convenções por uma questão tanto estilística quanto interpretativa. O que pode dificultar a leitura fluida exigindo uma concentração extra por parte dos leitores ou funcionar como uma ferramenta que amplia a expressividade e a densidade das histórias.

José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998, é amplamente reconhecido não apenas por suas tramas complexas e temas profundos, mas também por seu estilo narrativo fluido e contínuo, onde frases se estendem por parágrafos inteiros, unindo ideias e diálogos sem o uso convencional de vírgulas, pontos finais ou travessões.

Lembro que a primeira vez que li Saramago – justamente “Ensaio sobre a cegueira” – fiquei impactada: como assim é possível escrever um livro inteiro de maneira inteligível apenas com o uso de vírgula e ponto em vez de outros sinais de pontuação, como pontos finais e parágrafos convencionais? Para mim, particularmente, a pontuação (ou a falta dela) não foi um obstáculo à compreensão, mas um espanto. Fiquei verdadeiramente desconcertada, principalmente porque o uso da vírgula não é algo que assimilei naturalmente.

Em “Um copo de cólera”, Nassar usa mais sinais de pontuação, porém em um fluxo de linguagem interrupto, isso quer dizer que só aparece ponto no final e a leitura pede um só fôlego em cada um dos parágrafos-capítulos. Nas duas obras a falta de pontuação e de espaço, bem como a própria diagramação fazem parte da proposta pensada pelos autores. Só é possível subverter a pontuação de maneira compreensível se você tiver pleno conhecimento e clareza estrutural da pontuação tradicional.

O estilo narrativo de Saramago não é uma violação das regras gramaticais, mas sim uma escolha estilística deliberada para manter uma continuidade na narrativa, criando uma cadência própria que difere da escrita convencional. Em uma era onde a clareza e a brevidade são frequentemente valorizadas, a dificuldade inicial de adaptação à sua prosa pode ser considerado um ponto negativo e tornar a leitura desorientadora e cansativa.

Além de José Saramago, vários outros autores ao longo da história da literatura também experimentaram com escolhas de pontuação diferentes, desafiando as normas convencionais e contribuindo para a diversidade estilística na escrita. É o caso do escritor colombiano Gabriel García Márquez, famoso pelo realismo mágico, que ocasionalmente empregava longas sentenças sem pontuação explícita para criar um fluxo contínuo de eventos e imagens em seus romances, como em “Cem Anos de Solidão”.

Alguns autores brasileiros também se destacaram por suas escolhas ousadas e distintas no uso da pontuação, contribuindo para a diversidade estilística na literatura brasileira. É o caso do Guimarães Rosa que frequentemente utilizava neologismos, arcaísmos e um estilo de escrita único que incorporava uma pontuação peculiar. Em suas obras, como “Grande Sertão: Veredas”, ele explorava a linguagem de forma inovadora, criando um fluxo narrativo que refletia a oralidade regional.

Clarice Lispector também tem um uso muito próprio da pontuação, muitas vezes a utilizando de maneira minimalista para criar um ritmo particular. Em obras como “A Hora da Estrela”, Lispector emprega uma prosa que reflete estados emocionais e pensamentos complexos de seus personagens. Em “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”, além da sua maneira usual de uso dos sinais, Clarice inicia o livro com uma virgula e finaliza o livro com dois pontos… como se estivesse ainda algo por falar. Travessões abrem e fecham o livro “A paixão segundo G.H”.

Esses autores não apenas desafiaram as convenções literárias em relação à pontuação, mas também contribuíram significativamente para a evolução da linguagem e da narrativa na literatura mundial, influenciando gerações de escritores e leitores com suas inovações estilísticas. Também se destacaram por suas escolhas ousadas e distintas no uso da pontuação, contribuindo para a diversidade estilística na literatura de modo geral.

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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