A diversidade temática e estilística na literatura LGBT+

“Tenho uma memória muito boa, exceto pelas coisas que esqueci.” Estou presa nessa frase. Me soa engraçada, ao mesmo tempo verídica e, de certa forma, tem e não tem a ver com a coluna de hoje – que de antemão aviso: não é sobre memória. É uma das muitas frases que destaquei de “Sobre a terra somos belos por um instante”, livro de Ocean Vuong, poeta, ensaísta e romancista vietnamita-americano. Sou atraída por títulos bonitos e poéticos (e, nessa categoria, Clarice Lispector tem meu coração), mas o texto de hoje também não é sobre nomes de livros.

Tenho buscado diversificar minhas leituras e isso inclui ler também artigos científicos, mais mulheres, diferentes temas, estilos, vozes e gêneros de livros. E “Sobre a terra somos belos por um instante” me atravessou de uma forma que não consigo descrever. Por isso, mais do que falar desse livro em específico, gostaria de falar do que ele representa. A literatura LGBT+ é um campo fértil e diversificado, que reflete a luta, a resistência e a celebração das identidades e experiências de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outras minorias sexuais e de gênero. Em um mundo marcado por desigualdades e preconceitos, esses textos emergem como poderosas ferramentas de visibilidade e transformação social.

O livro de Ocean Vuong aborda muitos temas pertinentes, incluindo a perspectiva de um homem gay, estrangeiro e sobrevivente de uma guerra. A língua é uma barreira quase intransponível, que demonstra as camadas do preconceito com quem é “de fora”. Ser estrangeiro em um país distante não difere muito de se sentir estrangeiro no próprio país de origem. Os traumas da guerra permanecem e moldam a vida dos sobreviventes. A homofobia castra o amor de se desenvolver plenamente.

Gosto muito da forma como Vuong escreve, sem distinção concreta entre poesia e prosa, com digressões de memória que, aparentemente desconexas, somam-se em uma trama maior. Cheguei a este livro depois de ler um post no Instagram de uma amiga com um trecho e fiquei muito interessada em conhecer a escrita de Ocean. Inicialmente, li “Céu noturno crivado de balas”, de poemas, a estreia do autor. Encantei-me com a linguagem, a dureza e a delicadeza contidas em seu estilo. O encanto foi triplicado lendo “Sobre a terra somos belos por um instante”. Como contei anteriormente, tenho uma queda por títulos bonitos e, sejamos sinceros, Ocean Vuong tem uma capacidade ímpar de dar nomes poéticos a suas obras e de transfigurar a dor em algo palatável.

Ano passado li “O parque das irmãs magníficas” da argentina Camila Sosa Villada, que combina autobiografia com realismo mágico. Cheguei nessa obra primeiro pelo jornalista Chico Felliti, mas só comecei a ler mesmo por recomendação de uma amiga. Originada de um blog, a narrativa mistura elementos fantásticos com a brutal realidade enfrentada pelas travestis, no Parque Sarmiento, em Córdoba, documentando dramas, traumas e resiliência. Com honestidade e beleza literária, Camila oferece um retrato vívido e potente da cena travesti, criando um testemunho de sobrevivência e um hino à resistência e ao afeto. Assim como a obra de Ocean é um exemplo de como a literatura LGBT+ pode inovar e expandir os limites do gênero literário.

Camila destaca a importância das palavras e da terminologia na literatura e na vida real. Ela prefere a palavra “travesti” por sua força poética e significado profundo, em contraste com termos como “mulher trans”, que ela considera menos inspiradores. Essa escolha de linguagem não é apenas uma preferência estética, mas também uma declaração sobre a identidade e a experiência vivida, mostrando como a literatura pode ser um espaço para reivindicar e redefinir termos e conceitos.

Em uma entrevista à revista Veja, em junho deste ano, em ocasião da sua participação na Feira do Livro 2024, em São Paulo, Camila explicou:

“Eu prefiro sempre a palavra travesti. Já falei sobre isso. A palavra travesti é como a palavra saudade para vocês — pelo menos na Argentina. Não tem tradução. Você pode pensar, mas não é só um homem que se veste de mulher? Não é só isso, é uma identidade que se alimenta da experiência. Simone de Beauvoir teria dito: ‘Você não nasce mulher, você se torna uma’. Pois bem, da mesma forma, você não nasce travesti, você se torna travesti”.

Quando perguntada sobre a importância dessa diferenciação, respondeu:

“É uma discussão interessante, porque, nos últimos anos, com o aparecimento da lei de identidade de gênero, e com o aparecimento da “pinkwashing”, aquela coisa de lavar tudo de rosa [para atenuar o discurso]. Muitas pessoas embarcaram neste trem. E se chamam a si mesmos de trans, trans não binário, trans não sei o quê, trans não sei quanto. Isso parece completamente antiliterário para mim. Gosto da palavra travesti. É muito mais poético, diz muito mais coisas numa só palavra. Dizer mulheres trans me desanima, me deserotiza, tira minha inspiração. Se eu escrever que ‘a mulher trans saiu de casa às cinco da manhã’ não é a mesma coisa que dizer que ‘a travesti foi embora’”.

A literatura LGBT+ é rica e complexa, refletindo a complexidade do ser humano, inclusive em sua sexualidade. Ao apresentar perspectivas únicas e documentar lutas contra a discriminação, esses autores que citei aqui (e vários outros) promovem empatia e combatem preconceitos. Suas obras são essenciais para educar leitores, oferecendo não apenas representação e validação, mas também uma visão mais ampla e humana das experiências LGBT+. Essa riqueza literária demonstra que a experiência humana é vasta e multifacetada, e que a inclusão de vozes LGBT+ na literatura enriquece todo o campo literário, oferecendo novas perspectivas e desafiando normas estabelecidas.

Idayane Ferreira
Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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