Memórias afetivo-literárias: Perto do coração selvagem, Clarice Lispector

Quando comecei a escrever os textos sobre literatura, desejei que houvesse aqui um espaço em que mais pessoas pudessem compartilhar suas experiências e inventei um “miniprojeto” chamado Memórias afetivo-literárias para contar sobre livros que marcaram minha infância ou adolescência. Convidei também amigos e amigas e os próprios leitores da coluna a contribuir com suas memórias.

Na primeira coluna nesse formato, falei sobre o livro “Conversações com Renato Russo” e, lembrando agora, me dou conta de que foi escrita há pelo menos 4 anos. Quem era eu há 4 anos? Alguém recém-chegado à casa dos 30, muito fã do Renato Russo e que, passada a adolescência, continuava amando as músicas da Legião Urbana. Ainda sou assim, embora, em muitos aspectos, seja uma pessoa bem diferente. Muito do que sou hoje é resultado também das músicas que ouvia na adolescência e das minhas leituras…

Se há um livro, portanto, que me define e que me marcou desde a primeira vez que passei os olhos nele, sem dúvida é: “Perto do coração selvagem”, de Clarice Lispector. Romance de estreia da autora foi lançado em dezembro de 1943, recebeu prêmio de “melhor romance de estreia” pela Fundação Graça Aranha em outubro de 1944. Tenho tanto apreço por essa obra que receio que as minhas palavras fiquem muito aquém do que sinto e não consigam transmitir o real efeito e impacto que esse contato inicial com a Clarice surtiu em mim.

Estava no terceiro ano do ensino médio, contando aí uns 17 anos de idade. Me sentia meio deslocada entre os grupinhos de meninas e de meninos. Embora tivesse boa relação com meus colegas de turma, preferia mesmo a companhia dos livros. Passava todos os recreios, sem exceção, lendo na biblioteca. Isso ocorria principalmente porque a escola não permitia empréstimo de livros aos alunos e só era possível ler no local, o que não fazia sentido nenhum.

Deslizava entre as poucas estantes abarrotadas, lendo os títulos nas lombadas, escolhia um livro, sentava-me e ficava ali absorta na leitura até que tocava a sineta avisando o fim do recreio. Anotava o nome e a página em que a leitura havia sido interrompida e voltava no dia seguinte, no mesmo horário, para o ritual de sempre. Havia em mim muita sede de ler e pouco acesso a livros, por isso, logo que me foi possível prezei por compra-los, pois desejava tê-los à mão. Até que isso fosse possível, entretanto, desfrutei do que as bibliotecas me permitiam.

Certo dia um livro chamou minha atenção, menos pela capa e mais pelo título: “Perto do coração selvagem”… o nome me soava belo, poético e ao mesmo tempo rústico, como são os cavalos. Realizei meu ritual: folhei as páginas, escolhi um trecho qualquer e li. Aquele trecho aleatório ressoou em mim de uma maneira que nunca vou saber explicar. Tomada por um assombro, iniciei a leitura, sorvendo e sentindo cada palavra. Eu nunca tinha lido nada nem minimante parecido com aquilo! Não havia uma história nos moldes que estava acostumada, o enredo me parecia indefinido, mais próximo da filosofia do que da literatura.

Hoje em dia entendo exatamente o que é essa técnica de escrita, se chama fluxo de consciência. O conceito, cunhado pelo psicólogo funcionalista William James em seu livro “Princípios de Psicologia” (1890), descrevia como os pensamentos se organizam de forma contínua e não linear na mente. Sobreposto para a literatura, o termo significa um tipo de narrativa que busca reproduzir os processos mentais, uma “consciência pessoal”, sensível e contínua, quase ininterrupta.

“Perto do coração selvagem” possui personagens bem definidos e diálogos, entretanto, é construído em sua maior parte através do fluxo de consciência de Joana, a personagem central do livro. Ela narra sua vida interior, alternando entre passado e presente, guiada pela memória.

Poderia dizer – sem conseguir transmitir a beleza e a complexidade contida na escrita da Clarice – que o teor da “história” é mais ou menos essa: Órfã desde pequena, Joana viveu com o pai até sua morte, antes de ir morar com os tios. A relação com a família é tensa, culminando em sua ida para um internato. Lá, um professor torna-se seu confidente e amor adolescente. Mais tarde, casa-se com Otávio, mas a descoberta de seu relacionamento com a ex-noiva, Lídia, contribui para a separação. Ela é seguida por um homem desconhecido, com quem tem encontros que alimentam sua autoinvestigação. Eventualmente, parte sozinha em uma viagem que reflete seu desejo de autoconhecimento e renovação.

O meu eu de 17 anos identificou-se sobremaneira com a destemida, secreta e íntima Joana. Ela “sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as mulheres”. O assombro inicial da leitura deu lugar a um encantamento sem limite. Foi a primeira vez que, genuinamente, quis ler mais livros de um mesmo autor e conhecer quem era a pessoa para além da sua obra.

Não satisfeita com os poucos 15 minutos diários em que me dedicava à leitura do livro na biblioteca – que correspondia ao tempo de recreio – dei um jeito de roubá-lo, enfiando-o despretensiosamente junto ao caderno que usava para fazer anotações. Meu coração palpitava tão alto que o sentia mais próximo do ouvido que do peito. Chegando em casa, li o quanto pude, fiz marcações em caneta em vários trechos preciosos. Tempos depois, quando já havia terminado de ler, emprestei a um amigo e o livro roubado nunca mais voltou para as minhas mãos.

Em “Perto do coração…”, Joana também rouba um livro – fato que ocorre já nas primeiras páginas – ela é flagrada pela tia que a pressiona por uma confissão do “pecado”. O ato é mais insubordinação do que desejo real de possuir.  Ah, eis uma lição, eis uma lição, diria a tia: nunca ir adiante, nunca roubar antes de saber se o que você quer roubar existe em alguma parte honestamente reservado para você. Ou não? Roubar torna tudo mais valioso.” O exemplar que me foi “honestamente reservado” veio alguns anos depois, comprado talvez em uma feira literária ou em uma livraria.

Contei de início que “Perto do coração selvagem” foi a obra de estreia da Clarice Lispector, mas há “um detalhe” que não havia mencionado… a autora tinha 23 anos! Quando o livro foi lançado, especulou-se muito sobre as referências da obra (e sobre a própria escritora). No entanto, a única influência assumida por ela na produção do romance remete a Herman Hesse, com “O Lobo da Estepe”.

Já se passaram uns 17 anos desde que li pela vez primeira aquele livro. Meu desejo de conhecer mais sobre a escritora perdurou… perdura até hoje. Me dei (ou me deram) de presente livros e mais livros da e sobre a Clarice. Lê-la nunca me pareceu uma experiência simples ou fácil, mas é sempre instigante e filosófico. Ela subverte a sintaxe e a pontuação, aguça meus sentidos, ao mesmo tempo que me soa familiar, poética e vibrante.  “A liberdade que às vezes sentia. Não vinha de reflexões nítidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos.”

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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