Quantos autores da sua estante são negros?

Adoro crônicas. Gosto da capacidade que os cronistas possuem de experimentar a vida cotidiana e transformá-la em textos com um bom toque de ironia ou humor. Por isso, quando me deparei com uma crítica do escritor e editor Paulo Roberto Pires, na revista Quatro Cinco Um, sobre o fato dos cronistas brasileiros serem, em sua grande maioria, homens brancos, “que vivem de frente para o mar”, percebi que, de fato, não conseguia me lembrar de crônicas de autoria negra. Achei, no mínimo, curioso.

“A crônica é sem dúvida espelho dessa sociedade, mas também é um dos tijolos que a sustentam, é reflexo e argamassa de uma divisão social implacável em que ao negro é permitido o protagonismo eventual na música, no esporte ou em um ou outro concurso de beleza. Na literatura, nem pensar.”

Talvez, assim como eu, você também tenha passado muito tempo sem se dar conta da cor, raça ou gênero de quem escreveu o seu livro ou texto favorito. Talvez, assim como muitos, você acredite que isso seja mero detalhe, afinal, independentemente de sermos homens ou mulheres e da cor da nossa pele, somos todos seres humanos, todos da raça humana. Mas aí é que está! Não somos todos iguais, nem temos acesso aos mesmos bens e oportunidades — e o gênero, a cor e a condição financeira podem influir na produção literária.

No livro “Um Quarto Só Seu”, Virginia Woolf reflete sobre a representatividade feminina na literatura e a condição social das mulheres, pontuando que para o exercício pleno da liberdade intelectual são necessárias pré-condições como igualdade de oportunidades, educação formal e financeira. Ela resume bem na frase: “uma mulher, se quiser escrever literatura, precisa ter dinheiro e um quarto só seu”. A escritora, que era de uma família burguesa, teve acesso a uma boa educação e passou a se interessar pelo mundo literário por influência do pai, que era editor e crítico. Ao contrário dos seus irmãos, que foram educados na escola, ela foi ensinada em casa, já que na época, as mulheres ainda não tinham a possibilidade de estudar fora.

Quando li o texto de Paulo, passei um tempo tentando puxar da memória quantos autores da minha estante são negros, LGBTQPIA+, mulheres, indígenas ou de outra comunidade sub-representada. Quantos não são homens, brancos, “que vivem de frente para o mar”? Adoro crônicas, mas por que nunca me ocorreu que praticamente não existe diversidade geográfica, de ponto de vista e de raça entre os autores das minhas crônicas favoritas?

Assim como outras manifestações artísticas, a literatura pode transparecer o tempo e a experiência dos autores e, por consequência, evocar sentimentos e vivências em quem lê. Isso é muito vívido na crônica, por se tratar de um texto do tipo jornalístico-literário que, em geral, trata de assuntos cotidianos.

“No lirismo de crepúsculos e paixões, o “brotinho” não é uma jovem negra, como negro também não é aquele que, à beira da piscina, afoga as magoas no gim. No clássico de Paulo Mendes Campos, o amor acaba em todos os lugares que se possa imaginar, sempre circunscritos ao exíguo perímetro social, imaginário e afetivo de seus protagonistas.”

Não faz muito tempo que passei a escolher mais ativamente os livros me baseando também em critérios como gênero e cor da pele dos autores. Minha busca tem sido por ter mais diversidade, ampliando as vozes na minha estante e no meu leitor digital. Não é um exercício fácil, porque negros, mulheres, escritores LGBTQIAP+ e pessoas com deficiência ainda não possuem a mesma amplitude que outros escritores, majoritariamente homens e brancos.

Mas, sempre que consigo ampliar meu leque de leitura, tem sido uma experiência ímpar, como foi, por exemplo, o livro “O Parque das Irmãs Magníficas”, de autoria da argentina Camila Sosa Villada, escritora travesti. Acredito que vale uma coluna específica sobre este livro, mas trago um trecho da sinopse na Amazon:

O romance ‘O Parque das Irmãs Magníficas’ é isso tudo: um rito de iniciação, um conto de fadas ou uma história de terror, o retrato de uma identidade de grupo, um manifesto explosivo, uma visita guiada à imaginação da autora. Nestas páginas convergem duas facetas da comunidade trans, facetas que fascinam e repelem sociedades no mundo inteiro: a fúria travesti e a festa que há em ser travesti“.

Literatura diversa desafia estereótipos arraigados, nos convida a mergulhar em realidades muitas vezes negligenciadas pela literatura convencional e oferece insights sobre questões sociais, culturais e políticas. Ao incluir outras vozes em nossas estantes, estamos reconhecendo a importância da representatividade e da inclusão na construção de um mundo mais empático e igualitário.

Idayane Ferreira

“Jornalista com “abundância de ser feliz”, mais “da invencionática” do que “da informática”, acredita piamente que Manoel de Barros escreveu “O apanhador de desperdícios” baseando nela.“

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