No final de 2023, li “Metrópolis”, da alemã Thea Von Harbou, escrito em 1926. A obra é considerada um marco na literatura do século 20 e um clássico da ficção científica distópica, inspirando vários autores e cineastas. É também a base do filme homônimo de Fritz Lang, roteirizado por Harbou, sendo um clássico absoluto na história do cinema.
De antemão, é preciso dizer que existem diferenças entre o livro de Harbou e o longa de Lang, mas ambos têm como enredo a cidade futurista de Metrópolis, sendo esta não apenas uma localização, mas também uma personagem central da história. Avançada e opressora, Metrópolis é sustentada por grandes e poderosas máquinas que escravizam milhares de trabalhadores, moradores do subterrâneo, enquanto a elite desfruta dos prazeres da vida no andar de cima.
Abordando temas talvez hoje até comuns, como a luta de classes, a clonagem, a robótica, o materialismo, o capitalismo, a religiosidade e a racionalidade, a criação de Harbou foi genialmente trabalhada no audiovisual por Lang. Inspirando filmes como “Blader Runner” e “Star Wars”, clipes de bandas e artistas como Queen e Madonna, e até o escritor Anthony Burgess, autor de “Laranja Mecânica” (1962).
Embora seja um clássico de peso, gostaria de chamar a atenção no texto de hoje não propriamente para o enredo do livro/filme, tampouco para as obras nele inspirados, e nem mesmo para a escrita de Thea Von Harbou, mas para uma questão que tenho refletido atualmente ao ler a saga “Harry Potter”, da J.K Rowling, e que pode ser resumido neste parágrafo contido na apresentação da obra de Harbou, publicada pela primeira vez no Brasil em 2019 pela Editora Aleph: “Como separar a obra do autor? Ou melhor ainda como lidar com obras geniais e descobrir em algum momento que seus autores foram pessoas terríveis, monstros, abusadores, racistas, fascistas ou simplesmente tinham princípios muito distantes dos nossos ideais?”
Thea Von Harbou, foi escritora e atriz, casou-se com Fritz Lang por 11 anos durante o qual produziram vários filmes juntos. Após o sucesso de “Metrópolis”, os dois foram convidados a trabalhar no ministério da propaganda nazista por Joseph Goebbels, Lang recusou e mudou-se, enquanto Thea, de ideias nacionalistas e filiada ao nazismo, continuou a escrever roteiros e dirigiu filmes para a Alemanha nazista. Após a Segunda Guerra Mundial, foi presa e alegou colaboração com o partido para ajudar imigrantes indianos. Desnazificada, trabalhou com legendagem, morrendo em 1954 após complicações de uma queda durante a reexibição de “A morte cansada”.
A escritora britânica J.K. Rowling é mundialmente conhecida pela série infantojuvenil Harry Potter. Em 2020, as polêmicas envolvendo a autora começaram com tuítes criticados por conteúdo transfóbico, principalmente ao abordar o termo “pessoas que menstruam” de um artigo. Rowling enfrentou controvérsias, incluindo acusações de transfobia e críticas por comentários sobre boicote a Israel, declarações sobre muçulmanos, aversão a entrevistas e acusações de plágio, vencendo disputas judiciais em casos relacionados ao universo da sua obra.
A genialidade de uma obra muitas vezes coexiste com a complexidade moral do seu criador, e separar a obra do autor é um desafio delicado que confronta apreciadores de arte e literatura. Assim, depois de ler “Metrópolis” e, agora, lendo “Harry Potter” me deparei com o seguinte dilema: apreciar a obra pode implicar em endossar as ações questionáveis do autor?
Acredito que outra questão pertinente é: devemos mudar termos/palavras problemáticas em obras como “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, livro infantil de Monteiro Lobato, em que o escritor brasileiro usou expressões racistas, e cujo manuscritos pessoais demostraram apoio a uma supremacia branca e contrariedade às “ complicações sociais causadas pela miscigenação no Brasil”?
Longe de responder a essas perguntas e dilemas, gostaria de trazer alguns pontos para a nossa reflexão e que têm muito a ver com a forma como vejo a questão:
É preciso reconhecer e a aceitar que artistas, incluindo os escritores, podem ser falhos. Isso nos permite avaliar criticamente seu legado e compreender que o mal não anula automaticamente a grandiosidade da obra, mas nos coloca diante de uma encruzilhada moral ao decidir como proceder com nossa apreciação.
Embora o consumo de produtos culturais possa parecer tão somente uma escolha pessoal, precisamos entender que a forma como direcionamos nosso apoio pode moldar a indústria cultural para o apoio ou crítica a esses artistas. Desse modo, é importante que estejamos atentos a nossas escolhas e busquemos participar de debates construtivos.
É fundamental também avaliar as obras à luz das circunstâncias históricas em que foram produzidas, sem necessariamente justificar as visões controversas do autor. Neste caso, não acredito que trocar os termos racistas na obra do Monteiro Lobato, por exemplo, seja o melhor caminho. Precisamos encarar a temática de uma forma ampla, explicando e debatendo, inclusive com o público infantil, principal foco do livro “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, sobre o racismo contido na obra.
Diante de revelações impactantes sobre personalidades artísticas, cada pessoa deve decidir até que ponto está disposto a separar a arte do autor, ponderando sobre seus valores pessoais e a importância da obra em si. É necessário reavaliar prioridades e escolher conscientemente, e, ao final, a complexidade dessa questão exige sempre uma reflexão constante.