A ponta do iceberg

A primeira vez que ouvi falar em atentados em escolas foi em 1999 quando dois estudantes invadiram uma escola em Columbine e atiraram aleatoriamente em seus colegas. Soube esses dias que este foi um dos primeiros massacres em escolas e que o crime foi estimulado pelo desejo de vingança dos jovens, pois eles não eram considerados populares e sofriam bullying. Passei muitos anos considerando que ataques a escolas era devido ao bullying e à negligência parental.

Em outubro de 2002, houve um ataque a uma escola aqui de Salvador e, ao contrário de Columbine, o alvo do estudante eram as meninas. Este foi o primeiro de muitos ataques de extrema violência a escolas no país: foram pelo menos 23 casos em 21 anos. O estudante não era popular e também sofria bullying.

Após o massacre em Realengo (2011), eu comecei a reconsiderar minha hipótese que o bullying era o principal fator destes ataques, pois nomear a manifestação da violência como bullying esvazia a questão social maior que está em torno do cerne do problema, que é o preconceito com o diferente, principalmente quando se reflete sobre o que está por trás da escolha dos grupos-alvo dos bullers e quando pensamos na função psíquica que a agressão tem para os agressores. Seus alvos têm sido pessoas vulneráveis socialmente.

Após o massacre de Suzano (2019), em que dois jovens atacam principalmente meninas na escola em que estudaram e deixaram muitos rastros de suas andanças na internet, os especialistas observaram que um dos motivos pode ter sido o discurso de ódio presentes nas salas de bate-papo da deep web, que disseminam discurso misógino, racista e contra os direitos humanos.

As situações são sempre muito parecidas, pois são homens, jovens, sem um papel social muito definido, mergulhados em fóruns na deep web com discursos extremistas e tratando como herói quem promove atentados, então há de se considerar que estes ataques são multifatoriais.

Quando estes jovens não encontram lastro psíquico interno para lidar com o sofrimento físico e psicológico provocado pelo mal-estar social, pela angústia e pela vergonha que sentem por não seres capazes de se defender da violência dos agressores (muitas vezes são mais fracos e incapazes de se defender), eles ficam muito vulneráveis à sedução das ideologias extremistas.

Vale lembrar que ultimamente os pesquisadores estão percebendo a ligação entre o crescimento de células nazistas e o avanço do extremismo no país, o que contribui para a cooptação de crianças e adolescentes através da internet, bem como o vertiginoso aumento dos grupos online sem restrição por parte de plataformas sem controle e sem regulamentação, o aumento a acesso a armas de fogo, a disseminação e naturalização dos discursos misóginos e racistas e a espetacularização por parte da mídia dos casos que já ocorreram.

Eu acrescentaria a esta lista o processo de adoecimento psíquico devido ao isolamento relacionado à pandemia, pois estas crianças e adolescentes ficaram dois anos mergulhadas na internet e sem contato social. Neste retorno às aulas, será que é possível suportar conviver com o diferente? Será que estes jovens têm recursos simbólicos para lidar com as frustrações próprias do viver em comunidade?

Tenho me perguntado por que estes atentados estão crescendo no país. Nestes últimos vinte a trinta dias, pais e filhos estão em pânico com a ameaça de novos ataques contra as escolas. Em geral, eles anunciam os ataques com antecedência nas redes sociais, o que gera pânico na população e ação de pessoas que aproveitam este momento de instabilidade para promover o caos.

Estamos diante de um momento crucial de nossa democracia que nos desafia a tomar decisões para proteger nossas crianças e adolescentes. Cabe a nós enquanto cidadãos, a comunidade e as autoridades nos articularmos com o poder público para criação de protocolos e metodologias que diminuam a violência contra as escolas.

O poder público vem tomando iniciativas para coibir e antever estes atentados através de algumas políticas públicas. Estes dias, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em parceria com SaferNet Brasil, criou um canal exclusivo para recebimento de informações sobre ameaças e ataques contra as escolas. Houve também a liberação de verba para patrulhamento comunitário no entorno das escolas. Será o suficiente? Não há garantias.

Considero que um bom começo para voltarmos a ver as escolas como um espaço de cuidado, segurança e proteção é o diálogo entre escola e família e o compromisso dos pais em observar se seus filhos estão com impasses que geram sofrimento psíquico, pois os jovens responsáveis pelos ataques deram notícias dos sinais e dos sintomas de sua angústia muito tempo antes.

Lília Sampaio

Sou Lília Sampaio, psicóloga em Salvador, Bahia e uma psicanalista que gosta de histórias. Em minhas horas vagas, gosto de meus discos, livros, filmes, bichos, plantas, saidinhas com amigos e ficar em casa com minha família. Se você desejar fazer análise, faço atendimento presencial e online.

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